AS VEZES EM QUE PERDI O CHÃO

AS VEZES EM QUE PERDI O CHÃO – 19.01.12

Há momentos na vida da gente, que a gente perde o chão, perde o rumo ou, pelo menos, fica abobalhado por alguns momentos, sem noção, e não sabe se está vivendo um momento de realidade ou um momento de sonho ou de pesadelo.

Na minha lembrança mais antiga, a primeira vez que isso me ocorreu foi quando meus pais ficaram chocados com a morte do presidente americano John Kennedy. Não que eles fossem politicamente a favor dos americanos ou mesmo politizados e que a perda desse presidente tivesse algum significado para suas vidas. Nessa época, as feridas da Segunda Guerra Mundial ainda estavam abertas para eles. As lembranças ainda estavam vivas. E, ademais, havia o perigo da guerra nuclear no horizonte, ainda mais depois do incidente da Baia dos Porcos e do que se sucedeu com a remessa de mísseis para Cuba pela extinta União Soviética. Só quem viveu os anos sessenta e setenta sabe o quanto o mundo estremecia com a ameaça nuclear.

Era isso o que assombrou minha família. O medo do fim do mundo. O medo de que a morte do presidente americano trouxesse a guerra nuclear e com ele o fim de todos nós. Para eles, o assassinato era obra dos soviéticos. E eu, sem entender nada, senti o clima pesado como se alguém da família tivesse sido assassinado. Com esse sentimento veio-me pela primeira vez a sensação de ter perdido o chão.

A segunda vez que tive esse sentimento ocorreu exatamente dez anos depois. Perdi um irmão com apenas quinze anos de idade. Uma queda de bicicleta, o traumatismo craniano, a agonia da cirurgia e a morte no hospital. Era com esse irmão que dividia o quarto lá em casa. Era com ele que dividia meus aniversários. Nasci em 17 de agosto, ele no dia 16. Sou o filho mais velho e ele o terceiro dos quatro filhos dos meus pais.

Soube do acidente quando voltei do curso colegial noturno que fazia no colégio do estado. Achei estranha a casa vazia quando cheguei. Meus pais costumavam dormir com as galinhas, como se dizia na época daqueles que gostavam de dormir cedo. Não fazia sentido chegar em casa da escola e encontrar a casa vazia. Antes que saísse à procura deles nos vizinhos, um mau pressentimento me passou pela a alma. E esse sentimento se confirmou quando minha tia apareceu de supetão lá em casa. Logo ela que era casada com um italiano encrenqueiro, que não permitia que a mulher visitasse a família.

Contou-me do acidente e que meu irmão estava sendo operado em um hospital da região. Não pensei duas vezes. Apanhei as chaves do carro e raptei seu automóvel. Embora menor de idade, tinha dezessete anos, já sabia dirigir. Naquele tempo os pais ensinavam os filhos a dirigir. A cidade era mais tranquila e as leis um pouco menos duras. Cheguei ao hospital e a cirurgia ainda não tinha terminado. Toda minha família estava lá em vigília. Minha tia chegou de táxi e devolvi-lhe o carro.

Mandaram-me para casa. Tomei dois ônibus na madrugada daquela sexta-feira de março. Não consegui dormir. Voltei ao hospital a tempo de encontrar meu irmão já no quarto, cabeça enfaixada, sedado. Esperou minha chegada para partir, diante de mim que, impotente, apenas segurava sua mão no estremecimento final.

Os meses seguintes foram terríveis. Perdemos o chão e o rumo. Perdi o ano na escola. Perdi a confiança na vida. Perdi a inocência e amadureci precocemente. Segui a vida.

Estava em Belo Horizonte a trabalho, em 1980, quando ouvi a notícia da morte de John Lennon. Custei a absorver a notícia. Um pedaço da minha adolescência se foi. Mesmo tendo ficado as canções - e cantávamos todas - o mito continuou vivo. Mas, o mundo não seria mais o mesmo, pelo menos para mim.

Até hoje lamento a perda do Ayrton, muito mais que a do poeta Vinicius ou a do Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobin, que me ensinaram a cantar e gostar de fazer versos.

Mas, em janeiro de 1982, meses antes de sair atônico com a perda da copa do mundo daquele ano, daquele time maravilhoso, perdi Elis.

Estava no carro quando ouvi a notícia. Parei em uma rua secundária para ouvir o noticiário. Tranquei o carro e caminhei sem rumo pelas ruas do bairro de São Bernardo do Campo, onde ficava a sede da empresa que trabalhava. A garoa daquela manhã misturava-se às lágrimas que me corriam pelo rosto. Morte besta, morte estúpida, de causa mais estúpida ainda. Senti que não foi o coquetel de drogas e álcool que causou sua morte acidental, mas, a tristeza e a solidão que habitavam a alma da grande intérprete. Com ela entendi a diferença entre cantar e interpretar embora, como cantora, foi, certamente, a maior do seu tempo. Suas interpretações causam-me arrepios até hoje.

Neste ano, quando se completam 30 anos de sua morte, não posso negar que foi a última vez que perdi o chão. Mais tarde perdi tios, perdi meu pai, meu avô paterno; perdi amigos, perdi a avó que sempre esteve ao meu lado desde que nasci e que, por capricho do destino, fez com que eu estivesse ao seu lado, dando a ela meu último adeus, quando a família estava tocando sua vida sem saber que aquela pneumonia seria a causa da sua internação final.

Parece heresia ou maldade dizer que figuras tão próximas de mim não me deixaram sem chão quando os perdi. Na verdade, a morte da Elis serviu para endurecer a alma e preparar-me o coração para as perdas e dificuldades que vieram ao longo dos anos. E não foram poucas.

Não posso negar que tenho imenso carinho por seus três filhos. Sei que outros como eu se sentem tutores do legado que Elis nos deixou. Vejo Maria Rita, Pedro Mariano e João Marcelo seguirem seu brilhante caminho na vida. Certamente eles perderam mais pois deixaram de receber o brilho da pessoa iluminada que foi Elis. Os discos e os documentários devem trazer um vazio a cada um deles toda vez que a mídia homenageia Elis ou, simplesmente, toca suas interpretações.

Aquela gaúcha de um metro e cinqüenta e três de talento ainda não teve substituta à altura. Elis, sem querer, devolveu-me o chão que havia perdido em criança. Nunca mais perdi o chão, mesmo tendo perdido tanto. "Vivendo e aprendendo a jogar. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar".

Apenas por curiosidade: Elis Regina nasceu em 17 de março. Meu irmão morreu em 17 de março. Elis Regina morreu em 19 de janeiro. Minha filha mais velha nasceu no dia 19 de janeiro. Anos diferentes, mas datas coincidentes.

Para elas vão os meus aplausos hoje. Uma pelo aniversário da morte. Outra pela homenagem à vida. Às duas, aplaudo a alegria que me proporcionaram. Escrevo agora, antes que outra maldade do destino me faça perder o chão novamente.

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 19/01/2012
Reeditado em 23/01/2012
Código do texto: T3450468
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