Afinal de contas, para que foi que ela nasceu?
 
Fui até a loja comprar alguns itens que me faltavam para minha viagem. Coisas simples e poucas. Atravessei a rua e encontrei a porta fechada. Sendo de vidro vi que a proprietária estava atendendo uma amiga minha. Torci a maçaneta, empurrei a porta e entrei. O ar do interior da loja foi um verdadeiro bálsamo para meu corpo suado. Observei duas coisas: a chave estava na fechadura da porta e nenhuma das funcionárias da loja estava lá. Fiquei pesquisando nas prateleiras depois que cumprimentei as duas. Quando a outra freguesa foi embora a atenção se voltou toda para mim. Ela me indicou os melhores produtos, comprei e paguei. Eu já estava de saída quando ela chamou-me para ver o site em que estava pesquisando. Procurava a cidade perfeita para morar. Não tive outra opção se não perguntar se ela estava se mudando da cidade. Vi que o site era em inglês e encompridei a pergunta querendo saber se ela estava pretendendo ir para outro país. Ela respondeu que sim, mas que estava com um problema – as filhas não queriam se mudar para lugar nenhum. Dei uma de amiga compreensiva, sabendo mais ou menos a idade das meninas. Falei que nessa época da vida a coisa mais importante para os adolescentes é a amizade. Foi como se tivesse dado corda a um papagaio. Daí para frente ela falou sem parar.
Não dou conta de repetir aqui tudo o que ela falou, nem a ordem que falou, mas foi um quase monólogo – praticamente não abri a boca.
Ela disse entre outras coisas que não nascera para ser mãe. Nem para ser tia ou madrinha. Que seria muito mais feliz se não fosse mãe, mas que agora era obrigada inclusive a deixar de trabalhar para cuidar das filhas. Disse que devolvera as filhas ao pai, seu ex-marido, mas que ele também não dera conta de ficar com elas e as mandara de volta. Disse que a mais nova já estava com namorado e que como ela não permitia que se encontrassem a não ser nos fins de semana, a filha deixava a porta aberta para ele entrar depois que ela ia dormir. Que dormia cedo porque não agüentava nem televisão nem computador. Que entregara uma das filhas para a mãe que também não nascera para ser mãe. Que a mãe era muito boa para realizar os seus projetinhos sociais, mas era péssima mãe e avó. Que precisava tirar as filhas urgentemente dessa cidade horrorosa, sem nenhuma qualidade de vida. Que as filhas tomaram bomba, faziam o que queriam, gastavam o que não podiam, não obedeciam nem davam satisfação de seus atos. Depois passou a falar mal das pessoas que trabalhavam com ela, dos seus franqueadores. Só me permitiu abrir a boca quando me pediu sugestões para o seu novo ramo de negócios. Sugestão que não dei, mas se fosse dar ela nem ouviria. Para minha sorte um rapaz bonito chegou e exigiu a sua atenção. Aborrecida ela foi atendê-lo e eu escapei correndo bendizendo o sol que me torrava menos os miolos do que ela torrou.
Se ela tivesse me deixado falar eu lhe teria dito que eu também nunca achei que ser mãe era fundamental para a realização pessoal. Que eu também não nasci para ser mãe, e por isso não tinha sido. Mas que ser tia era a coisa melhor do mundo, e tão bom quanto ser professora. Eu diria que o problema dela era bem mais em cima porque ela não nascera para ser mãe, nem tia, nem filha, nem companheira de homem nenhum. Que ela não nascera para ser patroa nem empregada. Que do jeito que ela falava, praticamente confessava que nascera para ser nada, ninguém, apesar do nariz empinado. E no entanto ela era tanta coisa, coisas que desprezava, mas que a maioria das pessoas adoraria ser. Que esperdício!