Lembranças distantes




 
            Ainda me lembro, me lembro bem!  A minha  primeira conversa séria no meio da rua Santo Amaro, no bairro do Catete, no Rio.  A Santo Amaro era e é uma rua de suave ladeira, que vai subindo até chegar no bairro de Santa Tereza, onde eu costumava  ir  muito, brincar com um colegas riquinhos e que residiam em casas que tinham  piscinas, raridade na época.   A conversa séria se deu na metade dessa subida. O menino de rua me pergunta de chofre: -  Qual o seu time de futebol?  Estava por fora do futebol, percebi que ainda não tinha escolhido o meu time.  Ou melhor, já tinham  escolhido por  mim. Sabia que meu pai era Fluminense. Aí lasquei logo, pra não dar bandeira de bobo: - Sou Fluminense!  O garoto virou uma fera comigo.  – Que é isso? Tricolor?  Time de viado! Essa  torcida gosta de pó de arroz, ficam jogando talco nos adversários. Para com isso, sai dessa, amigo!  Humildemente, perguntei qual o time melhor pra torcer. Veio a resposta pronta: - É o Flamengo, cara, o maior time do mundo.  Já foi tricampeão ,  e no terceiro campeonato  o Valido fez um gol com a mão em cima do Vasco. Já  ouviu falar no Perácio? No Luiz Borracha, o maior goleiro do mundo? Fiquei abismado com tanta informação,  nunca falaram nada disso  comigo lá em casa. E muito menos  desse tempo longínquo.  Claro, o garoto estava falando do que ele ouvia do pai dele, dessa época remota.  É verdade que já não simpatizava muito com o Vasco. Mas do Flamengo não sabia nada. Estava sabendo naquele instante mágico. Apertei a mão do garoto, líder da rua,  e disse que daquele dia em diante eu seria Flamengo até morrer. Já molecote vi pessoalmente o segundo tricampeonato do Mengo, comandado por um técnico paraguaio chamado Fleitas Solich, mais conhecido como o feiticeiro da Gávea.   
            Ah! se me lembro!  Pois essa conversa pra lá de séria se deu numa época de  carnaval da minha infância. Como estamos  na terça-feira gorda de carnaval, vale a pena recordar esta festa, que já foi mais poética e até mais ingênua.  Neste carnaval de serpentinas, confetes e lança perfumes, apostando corrida com os colegas, levado pela emoção de estar na frente,  caí de cara em cima de uma enorme pedra, ficando com os dois dentes da frente pela metade. Passei a adolescência com os dentes cotós, que  dava um  certo charme de menino travesso. A cicatriz no lábio inferior permanece até hoje. À noite, quando meu pai, o tricolor, chegou do trabalho, me vendo  com a boca inchada e com os dentes pela metade, alarmou-se e a preocupação era a bronca que  a minha mãe ia dar nele, quando voltasse de uma  viagem que ela estava fazendo.  No mínimo,  um pai relapso... Reconheço que era difícil ele cuidar de mim. Eu escorregava mais que sabonete. Acho difícil alguém  me segurar.  Toda vez que saio do consultório do meu médico angiologista, ele me adverte: - Gilberto, não me faça mais arte! É que resolvo inventar uns tratamentos alternativos por conta própria e fico atrapalhando o serviço dele, que quer me dar alta, mas eu não deixo com minhas “artes”.
            Eita, lá estou eu novamente com minhas fugas de ideias. Desculpe meu leitor, deixa eu voltar para as lembranças. Como ia dizendo, era carnaval! A queda, o Flamengo,  nada disso tinha importância pra mim, queria era brincar o carnaval e cantar as músicas do Braguinha, com o lábio inferior parecendo o do cacique Raoni.  Como acontece até hoje, cantávamos marchinhas consagradas de décadas antigas, como as   marchinhas  “pirata da perna de pau”, “a mulata é a tal”, cantada por Rui Rei,  e “chiquita bacana”.
            Vale a pena mostrar as letras:  Eu sou o pirata da perna-de-pau/do olho de vidro da cara de mau// minha galera/nos verdes mares não teme o tufão/minha galera/só tem garotas na guarnição/por isso se outro pirata/tenta abordagem eu pego o facão/e grito do alto da popa:/”Opa! Homem não!”.  A mulata é a tal era assim: Quando ela passa todo mundo grita:/”estou aí nessa marmita!”/quando ela bole com os seus quadris/eu bato palmas e peço bis/ai mulata, cor de canela.../salve, salve, salve, salve, salve ela!  E Chiquita Bacana:  Chiquita Bacana lá da Martinica/se veste com uma casca de banana nanica (bis)/ não usa vestido, não usa calção/inverno pra ela é pleno verão/existencialista com toda razão/só faz o que manda o seu coração.
            Tenho certeza que essas músicas fizeram minha cabeça de menino. Introjetei  a filosofia delas. O que ficou pra mim até hoje: “Opa! Homem não!”, “Ai mulata cor de canela, salve, salve, salve ela!  E, finalmente, gostar muito de ver uma Chiquita Bacana vestida só com casca de banana nanica e pedindo bis.      O coração do menino de ontem continua a pulsar e pulsa forte.   As mulatas e as Chiquitas Bacanas continuam a existir, que bom!

           É evidente, amigos e amigas, estou exagerando na brincadeira com as mulheres. O que  quero passar nestas lembranças é aquele espírito bom do carioca de então, do “malandro” no seu melhor sentido, sabendo driblar as vicissitudes da vida com alegria, com humor . Na hora da seriedade havia até muito respeito entre as pessoas. Pra encerrar, vou contar uma que talvez surpreenda o leitor. As favelas do Rio sempre existiram. Eu, menino, ia sozinho para uma favela visitar meus amigos de rua, como se estivesse visitando um amigo riquinho de Santa Tereza. Era o Rio ameno e humano.  As soluções da pobreza e outras mazelas humanas poderiam ter tido um caminho mais humano... Mas depois apareceram os incitadores do ódio e perdemos o caminho...  
            Paro por aqui com minhas memórias,  já abusei demais de meus bons leitores.
            -  Hein?  Estão me perguntando sobre os Homens?
            -  Ah! Os Homens! Não me peçam pra falar sobre eles,  além dos tempos terem mudado tanto, nunca me dediquei a um estudo sério deles.