Derradeira partida

Derredeira Partida

Mais uma vez ele olha para as letras, mas não consegue agrupá-las em palavras, conhece os signos, as formas, os desenhos, mas não compreende mais o sentido.

Seu dicionário interno está obsoleto e seus verbetes desconexos, ouve uma língua desconhecida, um novo dialeto e não encontra sequer as raízes das expressões.

Ele se sente um extraterrestre que acabou de chegar a um planeta exótico ou mesmo alguém que viu seu mundo virar do avesso levando costumes,padrões e normas.

Ensaia falar mas não há nada a ser dito, se cala e guarda em si os resquícios do que ainda lembra, é tudo que lhe resta.

Sente uma necessidade urgente de perpetuar sua cultura, manter vivo seu legado, acesa sua tocha olímpica, mas seu sol já mergulha no horizonte sem promessa ou certeza de volta.

O tempo agora se extingue rápido, parece que a abertura da velha ampulheta aumentou e a areia leva junto seus sonhos e planos apagando-os como se fossem miragem.

Os olhos que vê parecem não enxergá-lo, sente como se fosse um objeto, uma velha cômoda retrô ou um baú cheio de quinquilharias sem valor, algo a ser esquecido num porão sujo e abandonado.

Seus mapas detalhados,cheios de atalhos,passagens secretas e incalculáveis tesouros jazem perdidos, totalmente à vista, mas longe dos alcance dos que os ridicularizam ou descartam.

Seus elixires,poções e receitas escorrem pelo chão voltando ao seu pó original e antecipando sua iminente chegada.

A lua chega com seu séquito de estrelas numa última saudação, traz o lamento da nova maré que açoita as areias numa vã e frustrada tentativa de alcançá-lo em sua carícia derradeira.

Ele entende a natureza como jamais foi capaz, quase consegue perceber suas moléculas voltarem fracionadas para o ar e serem espargidas ao vento, mitificar sua eternidade.

Ouve seu nome sendo sussurrado, um doce e último chamado, a voz é de sereia e o convite irrecusável, não há mais dor ou o menor resquício de medo, apenas a certeza do dever cumprido e do inevitável ponto final.

Muitas virgulas e reticências adiaram esse momento, mas a estrada realmente chegou ao fim, ou pelos menos, ao limite desta composição.

Agora resta a eternidade. Ou não.

Leonardo Andrade