A máquina de escrever Olympia

Poucas coisas na minha vida tiveram tanta importância quanto a chegada da máquina de escrever.

Foi no início dos anos 70. O meu pai resolveu comprar uma Olympia para mim. Ele sabia o tanto que eu tinha prazer em estudar. Estudar, para mim, foi sempre tão importante quanto a alegria de viver. O prazer em aprender sempre esteve colado à minha pele, sendo o objetivo e a satisfação maiores de toda a minha vida.

Morávamos num sobrado na rua Albuquerque Maranhão, no bairro operário do Cambuci, e o meu pai tomou a decisão. E aí, numa tarde de sol, a Olympia triunfalmente chegou. Envolvida numa maleta preta muito grande, era uma imagem cinematográfica, raríssima e inebriante. Eu poderia fazer os meus trabalhos escolares ali, fazer redações, escrever, escrever muito, com um prazer inesgotável.

Raras vezes vi brilho no olhar do meu pai, mas naquele dia, os seus olhos brilharam intensamente. Alegria por poder me dar um presente daquela grandeza...

À noite, foi difícil eu pegar no sono tantos eram os planos. Eu pensava não só no presente. Eu já me imaginava fazendo grandes coisas, construindo identidade, sendo dona da minha caminhada através do conhecimento, produzindo muito..

Os trabalhos escolares passaram então a ficar muito bem feitos. Eu ia evitando todos os erros de Português, as rasuras (nem existia liquid paper...). Os erros deveriam ser apagados com a borracha mesmo e ficaria, como consequência, aquele papel marcado, denunciando desleixo. Seria insuportável.

Um dia, o meu grande professor de História, o Carlão, pediu que eu datilografasse um trabalho da faculdade para ele. Para mim, foi uma lisonja, afinal, ele confiava em mim como aluna.

As aulas do Carlão eram excelentes, de altíssimo nível. Era preciso estudar MUITO para acompanhar as suas aulas, ter o dicionário sempre à mão, pesquisar constantemente e não tinha colher de chá. O conhecimento deveria ser verdadeiro, profundo, científico. Nada vinha na bandeja como se quer nos dias atuais. E se não vem tudo pronto num vocabulário medíocre, em comparações infantilizadas, sem nenhum apelo intelectual e crítico, o aluno hoje tem crise de vermes ( para não se falar que ele está com crise de bicha).

Enfim, com rapidez, fiz a digitação para o meu grande professor. Antes, ele disse que me pagaria, o que obviamente eu disse que não seria nada. Afinal, ele havia confiado em mim e isso era um pagamento e tanto... Ainda mais: era com a minha máquina nova que eu faria aquela tarefa, aprenderia mais. Eu estava me sentindo iluminada, respeitada pelo melhor professor daquele tempo.

Entreguei o trabalho solicitado. Nossa! Ele gostou! Veio sorrindo para mim com satisfação, muito agradecido do outro lado do corredor e eu não sabia o que fazer para esconder a minha timidez.

Ele reconheceu sinceramente o meu esforço e me disse que havia me comprado um livro.

Aí bateu o desespero. Uma ansiedade positiva exasperante, inexplicável: o meu melhor professor, que eu sonhava um dia saber tanto quanto ele, me daria um livro em sinal de agradecimento! Que santo privilégio! Qual livro seria? Só poderia ser um livro extraordinário, inteligentíssimo como era o meu professor . Eu pensava numa dedicatória que eu haveria de ler milhares de vezes. Guardaria esse troféu mágico para sempre. Eu já nem conseguia pensar em outra coisa. Para nós, naquele tempo, o ato de fazer esse tipo de aquisição era mais raro em função da nossa condição financeira. Então um livro era sempre o melhor presente do mundo, alguma coisa como o divino entrando na nossa casa, abrindo janelas para uma primavera especialmente exuberante, permitindo que o ar entrasse pelas nossas narinas e refrigerasse a nossa alma. Sangue novo, pensamentos brilhantes, novas conversas, debates políticos ... tudo isso acontecia com as leituras.

Quantas vezes deixei de tomar sorvete para guardar as moedinhas. Não só isso, mas deixei de comer uns tantos bombons, andei quilômetros a pé... para chegar a hora de ir à livraria do Povo, na praça João Mendes ou mesmo ir à Brasiliense. Foi assim que comprei o mais-que-perfeito “Romanceiro da Inconfidência”, da Cecília Meirelles em 1974.

E eu, no meu silêncio, no meu pudor, não perguntei qual era o livro que eu haveria de receber... passou uma semana, duas , três... ah! o tempo foi tão cruel e arrastado!

Nos dias de aula com o professor, eu ficava apreensiva, imóvel, na surda espera. E ele entrava na aula apenas com os diários na mão. O Carlão, para minha infinita tristeza, se esqueceu.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/03/2012
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