O amor nos tempos do Face.

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Gabriel García Márquez, o escritor colombiano reconhecido nos quatro cantos do mundo por “Cem Anos de Solidão", e também premiado com o prêmio Nobel de Literatura (1982), é, sem dúvida, unanimidade quando o tema a ser tratado é o “amor visceral”. “O amor nos tempos do cólera”, mesmo sem perder de vista o gosto pela perene Solidão, é o livro-testemunho do talento absurdo desse autor para as coisas do amor e suas intensidades. O livro de 1985 é uma narrativa feita de alma desperta, no profundo do que vai se forjando no cunho do indescritível, quando já se tiram as cascas da linguagem e se pode contemplar o selvagem da escritura, limpa de ornamentos. Este livro além de um dos mais lidos no mundo, já teve também sua adaptação para o cinema; isso no ano de 2007. Para a nossa quase alegria conta com a participação de um dos ícones da atuação brasileira, a atriz Fernanda Montenegro; e estrelando o elenco, o magistral ator Javier Barden. Os dois são na sequência mãe e filho e Barden protagoniza o romântico incurável Florentino Ariza. E que estranha dose de doçura amarga este encontro inusitado nos traz. O cinema tem dessas coisas, vai da magia à frustração. Pois teria sido um encontro realmente mágico e belo se o filme não tivesse se mostrado fraco em vários de seus aspectos, desde da caracterização dos personagens até chegar, ou melhor, não chegar a um bom desenvolvimento da narrativa. A película foi de mergulhos tortuosos na leitura adaptada do livro. Uma pena não ter dado certo. O desenrolar da trama enfadonho foi de tropeço em tropeço e não alcançou nem nos diálogos e nem as atuações o estupendo impacto das palavras e dos personagens imagéticos de Gabriel García Márquez.

Parvamente aqui resumida, a história de Gabriel García Márquez traça o destino de Florentino e Giovanna Mezzogiorno que se encontram ainda na juventude, se apaixonam e se perdem um do outro pelos desvios, extravios do destino. Florentino Ariza trabalha justamente nos correios, uma metáfora que traça o paralelo entre encontro e despedida, amor e distância, ausência e presença. E haja distância e haja a permanência da ausência! E haja perseverança! Gabriel García Márquez nos comove e nos convence a espera - numa cumplicidade que vamos aos poucos adquirindo ao longo da leitura da história, de um drama que narra a trajetória de um amor que não se abotoa, e que tampouco se fecha, mas ao contrário; se abre ao tempo largo e nos abre, leitores, feito peixes, expondo nossas vísceras, nossas espinhas, nossos espinhos dolorosos se já tivemos ou sonhamos ter um amor tão intenso. Heróico, épico é o percurso do amor de Florentino e Giovanna, separados pela diferença de classes, separados por culturas distintas, ambos seguem suas vidas nas acomodações dos vãos, pois é preciso seguir o curso do rio, da história, da sociedade de então, início do Século XIX, onde são os pais a escolher os pretendentes e maridos de suas filhas. Não que isso tenha mudado, apenas outras são as acomodações de agora, as novas pseudo-escolhas.

Na história de amor de Florentino e Giovanna, ou mais do amor platônico de Florentino por Giovanna, é Ele, o tempo, que precisa seguir sua viagem pelo amor estendido, que se dilata pacientemente, numa completa e quase insuportável tolerância de existir, indo, indo, de volta, buscando a água do poço original. E haja espera! Separados por 53 anos, quatro meses e 11 dias, feito um registro de um ser, como uma flor murcha de aniversários perdidos no bolor do livro da vida. Mas ali, viva na sua cicatriz de existência.

Florentino faz de sua vida a própria espera enquanto Giovanna se casa com um médico que luta para enfrentar a epidemia de cólera, doença e cura seguem num duplo sentido de profusão de acontecimentos e sentimentos, numa completude que não exclui os desejos dos contrários. E é com este marido que Giovanna tem filhos e é com ele que permanece por toda uma jornada até ficar viúva. Só após a morte do marido é que Florentino e Giovanna se reencontram, já no tempo indiscreto da velhice; complexo sim, e permeado por dúvidas. Ficar juntos é dizer pouco diante do fluxo da narrativa que também nos aguarda, naquilo que a nós, leitores; prediz ser final.

Dito isso, justifico o título deste texto com uma nova angústia; a angústia do tempo moído, capitalizado, calculado, com juros e correções. O tempo que anda abreviando mais que palavras, mais que pronomes que antes eram de tratamento. O tempo que anda abreviando a narrativa, espatifando em cortes afiados, cortantes, o vidro falso que se pensou como o diamante das novas relações. Opacas, confundidas com super projeções do ego, com doses de exibicionismo vazio, as personas se apresentam, se multiplicam e até morrem às vezes, por sorte. E a vida é a do tempo das celebrações sucessivas, das celebridades espontâneas, das confraternizações fantásticas de seres não mais comuns, mas totalmente extraordinários. Todos extraordinários! Todos lindos, corpos maravilhosos, bocas fazendo beicinhos... Tudo o que parece ser do ordinário, do simples, do lento é tratado como “sem sentido” e rapidamente vira notícia velha - em questão de segundos. É o tempo veloz das ansiedades generalizadas, dos ansiosos de plantão a espera não mais de um amor humano que perdure; mas da última informação desnecessária sobre alguém ou ninguém. Não faz diferença.

Novas estatísticas e velhas intuições alertam para a exposição daquilo que nas relações amorosas não deveria jamais ser colocado feito carne na vitrine; mas que deveria sim ser de fato vivido, discutido e até terminado sem as vias do Face. Que feio! O amor nos tempos do Face significa mais e mais descartes e ainda o abuso de ridicularizar o outro sem nenhum respeito ou qualquer piedade. Parece que foi aberta a temporada de se enveredar por um desleixo coletivo na relação com o outro. O outro mesmo, aquele amigo de fato, o amor de fato. Muitos vão – sem saber - se tornando peças “de ocasião”: “então bloqueio”, “oculto suas fotos”, “mudo meu status e até, quiçá, minha orientação sexual.” Muda-se o projeto do enredo, coloca-se personagens outros numa corrida desenfreada que não dá conta da narrativa e o sujeito passa então a peregrinar por uma coleção de frases de gosto duvidoso ou ainda a perseguir um universo reduzido de citações repetitivas. Parece que a preguiça de ler e pensar andou contaminando tudo. O amor nos tempos do Face angustia, pois afinal como lidar com tanta superficialidade, com a maldade despretensiosa que finge inocência? Como lidar com a ignorância daqueles que não sabem o que é ser responsável, que não aprenderam ainda do bom senso o respeito, ou não souberam na nova dinâmica da ansiedade o que é da placidez, da mansidão dos que amam legitimamente, sem badulaques, penduricalhos, sem pieguices. O amor nos tempos do Face é Bruto e escorrega na própria lambança, talvez por conta do excesso de antolhos.

Mas há esperança. Fora, claro. Quando o desejo se encontra nos olhos dos amantes, nos olhos de um Florentino e de uma Giovanna, e ambos se tocam sem nenhuma pressa, abraçados, aconchegados num tempo que vem e os carrega de volta para o despertar de uma vida dentro de outra, de um amor que faz de qualquer tempo o sempre inteiro e terno.

Patrícia Porto

Patricia_Porto
Enviado por Patricia_Porto em 10/03/2012
Reeditado em 10/03/2012
Código do texto: T3546850
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