Aprendendo a deixar para trás

Já deveríamos ter aprendido a lição. Ao observar minha esposa arrumando as malas para nos mudarmos de país pela terceira vez nos últimos seis anos, percebo como acumulamos coisas inúteis.

Vivemos num apartamento minúsculo em Buenos Aires, onde quase não há armários e, mesmo assim, estamos cercados de inutilidades: roupas que compramos e que nunca usamos, sapatos, chapéus, filmes que nunca assistimos, livros que nunca lemos e uma quantidade assustadora de papel, folders de restaurantes, mapas de cidades, documentos, contas, recibos...

O meu sonho era o de poder carrregar tudo que tenho numa mochila, mas logo descobrimos que isto é quase impossível.

Precisamos aprender a deixar para trás, a abrir mão de tanta coisa, mas há o imprescindível, que não cabe numa única mala. Só o meu equipamento fotográfico, as minhas ferramentas de trabalho, pesa quase dez quilos. Não posso deixá-lo para trás, é o meu ganha-pão, assim como outros não podem deixar para trás seus escritórios, suas salas de aula, seus automóveis ou aquilo fundamental para seu sustento.

No entanto, descobrimos que muito que consideramos essencial não o é. Roupas, livros, meu piano, eletrodomésticos, e também a companhia de certas pessoas, daquelas que nos põem para baixo, invejosas e negativas, pudemos deixar para trás sem remosos.

Pois existem coisas inúteis em nossas vidas, e também coisas e pessoas que nos prendem e nos atrasam. Às vezes, até as consideramos como essenciais, mas assim que nos livramos delas, era como se o peso do mundo houvesse sido retirado de nossas costas.

Alguns precisam deixar para trás seu país para aprender a amá-lo, enquanto outros constatam que lar pode ser qualquer lugar, desde que o de mais valioso esteja por perto. E os verdadeiros amigos continuarão sendo seus amigos apesar da distância, inclusive é nestas horas que você descobre mais claramente quem são as amizade reais e quais são aqueles que só se aproximam por interesse.

Já deveríamos ter aprendido a deixar para trás e, quando nos vemos diante de tanto lixo, tanto para jogar fora, juramos para nós mesmos que, em nossa próxima casa, faremos diferentes. No entanto, as pessoas acumulam por natureza, talvez um instinto pré-histórico de escassez, de guardar porque talvez necessitemos um dia para alguma emergência que nunca ocorrerá.

Deixar para trás é essencial, pertence à nossa existência. Deixamos nossa escola, nossos amigos de infância, nossos primeiros relacionamentos, nossos pais, a universidade, casas e carros, roupas e objetos, cidades e países, e depois nossos filhos se vão, nossas recordações se desvanecem, por fim, ao término de nossas vidas, deixamos tudo para trás, dinheiro, bens e todo o resto, o essencial ou o supérfluo.

Viver é abandonar.

(publicado originalmente em http://www.violanasacola.com/2012/03/aprendendo-deixar-para-tras.html)