Micheline e a nova descoberta no Brasil

Quem viveu sabe: os anos 70 foram especialmente difíceis no Brasil. No início da década, a grande farsa do Milagre Econômico fazia a classe média crer que a vida, enfim, melhorara .

Extasiada com o poder de compra, essa classe média, profundamente influenciada pelo ainda novo padrão Globo de qualidade, achava que o melhor dos mundos estava acontecendo: muitas novelas, mais futebol , a TV a cores chegando lentamente aos seus lares , nascendo o primeiro shopping center num bairro nobre de São Paulo, o surgimento dos hipermercados ... esse segmento social batia palmas para a ditadura.

Mas uma parcela da sociedade entendeu bem o que significava o militarismo no poder: o engodo, o infortúnio, a fraude ilimitada nas atitudes do cotidiano, fraude nos pensamentos e emoções. A minha juventude viu e sentiu isso profundamente e passamos a questionar e muito aquele tempo tão amargo , nublado como um outono quase inverno sem fim .

Jamais me esqueci daquele tempo em que, da janela do meu quarto, eu ouvia gritos torturantes provenientes da delegacia vizinha. E, junto disso, a amarga tristeza da impotência, do não ter o que fazer. Falar com quem? Com a imprensa? Não adiantava, tinha censura. Com algum religioso? Que nada , muitos padres achavam que a ditadura ia bem obrigado e a ala nova da Igreja estava sendo duramente perseguida. Dom Paulo Evaristo, então cardeal-arcebispo de São Paulo, por exemplo, era jurado de morte três vezes ao dia, religiosamente. E agora? Como era difícil ter oxigênio num tempo marcado pelo fedor moral daquelas elites empoleiradas no poder... Tempos do assassinato do jornalista Wladimir Herzog, o croata que, menino ainda, veio fugindo do Hitler com a família para o Brasil. Escapou do nazismo mas não escapou dos nosso carrascos. Tempos de assassinato de Manuel Fiel Filho e outros tantos “desaparecidos” .. . e o país escorria pelo ralo.

Naqueles tempos amordaçados pelo medo, pelo peso catastrófico da incerteza e com a pronta energia que o coração juvenil exigia que aflorasse, conheci Micheline.

Colega de colégio por apenas um ano, conheci essa moça no terceiro colegial, atual 3. série do Ensino Médio. (É tudo a mesma coisa: muda-se o nome para se dizer que alguma coisa mudou na Educação. Mas o que mudou mesmo foi o descompromisso, o desrespeito, o descaramento de muitos alunos em relação à própria falta de educação e de limites, mas isso é conversa prá mais tarde).

Micheline era recém-chegada da Síria e falava pouquíssimas palavras em Português. Linda moça, de olhar doce, recatada e educadíssima. Eu tentava conversar com ela , dar alguma atenção, dar-lhe visibilidade. Prontamente ela me olhava com carinho para atender a alguma pergunta minha mas não conseguia dar conta da maioria das respostas . Eu perguntava da vida política dali, do Hafez Assad, que era o ditador, pai desse fulano que agora manda matar com a maior desfaçatez os seus críticos.

Ela nunca me respondeu sobre o Hafez Assad. Talvez nem soubesse muito sobre a sua política sórdida em relação à sociedade. Naquele tempo eu nem imaginava que uma mulher árabe não tinha direito a coisa alguma, nem direito ao próprio corpo , aos seus desejos e sonhos. Pouco se sabia daquele espaço, geograficamente instigante, mas socialmente trágico. Numa daquelas tardes, daquele tempo de uma juventude envolvida em medo, perigo, tragédia e desejo de viver, resolvi telefonar para ela. O objetivo era integrá-la um pouco mais a essa nova vida, a uma realidade teoricamente menos amarga que a vivida no seu país. Pelo telefone, ouvi a sua voz muito feliz por ter sido lembrada . Ela queria falar, interagir, mas não obtinha tanto êxito assim.

Mas o que eu achava mesmo divertido era quando chegava a hora do intervalo. Rapidamente Micheline se dirigia à cantina do colégio. Era um espaço muito pequeno. Aliás, o colégio era muito modesto, mas encantador no carinho e no acolhimento que a equipe de professores dispensava aos alunos todos os dias. Através de apenas uma pequena janela o cantineiro tratava de ouvir e atender os nossos pedidos tão simples. E a Micheline descobriu a coxinha de frango. Ela ficou maravilhada com aquilo, saboreando cada mordida num silêncio sagrado, não desperdiçando nenhuma sensação daquela nova maravilha, aquela excelente descoberta. No dia seguinte e- em todos os dias seguintes – infalivelmente ela pedia uma “cuxinha” naquele intervalo tão esperado. “Cuxinha” ela pronunciava com resolutamente em letras maiúsculas.

Terminou o ano letivo e eu nunca mais soube daquela moça tão elegante, comprometida, inteligente, interessada nos estudos e tímida em relação aos novos espaços.

Mesmo após três décadas de distanciamento, eu espero que essa colega, de uma amizade tão fugaz, tenha sido - e seja – muito feliz. Que tenha compreendido que, no Brasil, sofre-se muito sim, mas é permitida a esperança. Naquela época trabalhávamos para que a ditadura caísse. Caiu. Dentre erros e acertos construímos muito já e ainda há uma longa história a se definir. Que ela tenha sentido a importância de a nossa vida não ser mais regulada pelos gorilas de plantão e que estamos escolhendo os nossos destinos dia após dia e que as mulheres – nós mulheres – fazemos muito bem a nossa caminhada. Vivemos sem véu, deixando o nosso cabelo esvoaçar pela doce paixão da primavera e que o homem para nós tem uma importância e um significado bem menor. Podemos viver tranquilamente sem eles, valorizando o nosso trabalho, uma profissão escolhida, um curso também escolhido... E que é comum se casar por amor e o papai não escolhe o nosso sentimento.

Que tenha aprendido a dirigir, Micheline, que tenha escolhido o próprio carro, a marca, a cor... e bombado pela avenida Paulista . Que tenha se casado – se teve disposição para isso – e descasado quantas vezes teve vontade de. Que tenha voltado para casa a qualquer hora, tendo bebido ou não. Que tenha percebido e se acostumado que nós mulheres, aqui no ocidente, buscamos avidamente a construção da nossa estrada e não andamos atrás de nenhum homem. Não somos sombra. Somos vida inteira com uma pulsação extraordinária porque sabemos que construir identidade é tão fundamental como o ar, como a suavidade do oceano, como o cantar do pássaro à luz da primavera.

Seja feliz, Micheline. E se aprendeu a fazer “cuxinha” que tenha sido para dar espaço ao prazer .

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/03/2012
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