Adélia e o seu pai Severo

ADÉLIA E O SEU PAI SEVERO

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 28.03.12)

Quando Adélia dos Santos Ferreira morreu, seus pais já estavam separados. Naquele tempo isso era muita coisa, essa coisa de separarem-se marido e mulher, pai e mãe casados, era caso para escândalo público e vergonha familiar. Na época, a mãe ficou na casa da Prainha, com sua religiosidade beata e a filha única que teimava em viver lendo e estudando, enquanto o pai se mudou para a Agronômica, onde morava amancebado, porém como cônjuge verdadeiro, com uma dona de nome Luzia.

A história da morte de Adélia, atropelada por um ônibus no meio da Ponte Colombo Salles, e das consequências desse trágico acontecimento foi contada em um livro publicado em 1984 e nunca mais reeditado, de título "Dança de Fantasmas". O caso andou um tanto esquecido porque pouca gente leu o livro e - desgraça suprema para soterrar qualquer acontecimento! - o fato aconteceu justo num sábado de carnaval.

O fato referido no parágrafo anterior é a circunstância de que Adélia ejetou-se - ou foi ejetada - de um carro em movimento que transitava pela segunda pista da ponte; logo após aquele veículo, na primeira pista, a da beirada, aquela que corre olhando para a Hercílio Luz, ponte que naqueles anos ainda existia de pé, subia o ônibus que atingiu a garota plena e irremediavelmente, prostrando seu condutor em estado de choque. O carro em que a menina se encontrava perdeu-se no continente defronte.

Adroaldo Ferreira adorava aquela filha e era na casa do pai que Adelinha se sentia mais gente, como se diz, mais à vontade, com espaço para leitura, com estante repleta dos seus livros de estimação e sem a perseguição implacável do odor de vela santa, da umidade de água benta, da ameaça dos cruéis castigos eternos nem do rosário sempre rezado das obrigações eclesiásticas recorrentes. Foi daquele ambiente de vida e realização pessoal que ela saiu para encontrar a morte. O pai sofreu dor profunda, assim covardemente apunhalado pelo destino.

Tempos depois, já em 2003, a história foi filmada num curta-metragem de 18 minutos produzido pela Laine Milan e dirigido pelo Chico Caprario, levando o título "As Diversas Mortes de Adélia" - porque cada pessoa que conhecia a jovem de 17 ou 18 anos tinha a sua memória muito pessoal de Adélia e via uma razão ou justificativa muito própria para a sua morte: como se ela fosse ao mesmo tempo várias e todas tivessem morrido subitamente.

Severo foi o pai de Adélia no curta. Vendo-o preparar sua participação no filme, qualquer um era capaz de jurar que ali estava o personagem vivo, não um ator. Ali estava um pai completamente arrasado, destroçado, acabado, com as roupas e o rosto em desalinho pelo pesado golpe recebido: uma voz embargada, ainda que firme, uns olhos úmidos pousados na face idealizada da filha querida que se fora, uma expressão de dor difusa e autêntica a cortar-lhe os traços, um ser humano alquebrado e, naquele momento, totalmente desesperançado. A participação de Severo Cruz conferiu uma dimensão humana marcante ao filme.

Agora, em fevereiro deste ano de 2012, esse pai sofre novo golpe ao ver sua casa na Costa da Lagoa totalmente consumida pelo fogo. Amigos e admiradores se organizam e marcam um "Tributo a Severo Cruz - Renascer das Cinzas", espetáculo com mais de 30 músicos, cantores e grupos musicais no palco do Teatro Pedro Ivo no sábado, 31 de março, para juntar dinheiro e comprar nova casa para o ator e também cantor.

E para que Severo continue a fazer o pai de muitas outras Adélias no cinema.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

Posse na Cadeira 32 da Academia Catarinense de Letras marcada para 12.04.12 às 19h30. Sua presença será uma honra e uma festa.