Senhor Hábito

Qual é o preço dos nossos hábitos? Outro dia fiz essa pergunta a mim mesmo. O que de certo vale em nossos costumes que temos um medo enorme de mudar, de ir além das aparências, de algo que nos cega sem querer e aceitamos querendo. Nossos hábitos parecem um lugar segura, lugar onde encontramos abrigo e paz, mas até quando? Parece que ninguém nunca está totalmente seguro quando se trata de hábitos, pois qualquer dia algo pode acontecer e mudar totalmente nossos costumes, virar tudo de pernas pro ar, e ai começamos do zero novamente, inventamos novos costumes, novos hábitos, quer dizer, pra quem sobrevivem as mudanças.

Normalmente não notamos essas mudanças, novos hábitos, mas eles estão sempre presentes. Quando mudamos de fase na vida normalmente mudamos de hábitos, deixamos de ser criança para ser adolescente, de adolescente para adulto, e de adulto para velho, embora essa mudança já aconteça dentro da própria fase, e é exatamente ela que é dona da transição. Que coisa louca é esse ser humano, que muda sem perceber e ao mesmo tempo com sua astuta razão percebe que mudou, digo, pois não somos iguais aos animais, às leis da natureza e causalidade natural já fazem tudo por eles, nem mesmo tem a consciência que mudaram, que cresceram, apenas vivem intensamente cada dia a qual a lei natural em seu espaço e tempo já está determinada a uma causalidade, e que seus hábitos nada são que como um vento que sopra, como um instinto que grita, como um olho feroz.

É bem verdade que também mudamos nossos atos pelo que posso denominar de força bruta, como por exemplo, a morte de um ente querido, uma separação inesperada, uma doença terminal, entre outros. Também mudamos pelo apelo a felicidade, essa tarja egoísta que nos assombra. Um bom exemplo é o casamento, que procuramos mudar nosso comportamento para agradar o outro, mas que na verdade o que queremos mesmo é nossa satisfação. É mister concluir que às vezes combina essa busca desenfreada pela felicidade também pela busca dos hábitos, mas isso não acontece em todos os casos, o que nos orienta a optar por um ou outro. Por certo, já ouvimos pessoas dizerem que o horário de dormir é à noite, e isso se torna um hábito saudável e desejável, porém ao surgir uma proposta de emprego noturna, ao qual o salário triplicaria, os hábitos antigos muitas vezes passam para o segundo plano, e os conceitos mudam em relação à busca por um entendimento de felicidade.

Mas afinal, o que seriam esses hábitos saudáveis? Nossa pretensão pela sociedade em que vivemos? É bem verdade podemos dizer que escovar os dentes todos os dias é um hábito saudável, já que prolonga a saúde bucal evitando cáries e bactérias. Mas isso não se da em todas as sociedades, por exemplo, existem algumas tribos que comem insetos para sobreviver e nem mesmo escovam os dentes. É o caso de algumas tribos da polinésia, que incrivelmente conseguem ter dentes saudáveis mesmo depois dos 70 anos sem nunca terem escovados os dentes, apenas devido a sua alimentação e algumas plantas medicinais . Não seria esse também um hábito saudável? Também a medicina atual comprova que alguns insetos possuem nutrientes muito favoráveis ao corpo, e que a energia que eles proporcionam é tamanha que garante um dia todo de exercícios. Tais costumes parecem estar mais ligados à necessidade de cada sociedade, a forma como vemos as coisas e no que acreditamos, conjuntamente com as questões genéticas, ainda que, tanto a medicina, quanto a história mudam seus discursos ao longo do tempo, e hábitos saudáveis passam a serem perigosos e vice-versa.

Absurdo mesmo é creditarmos a confiança das leis nos hábitos. Outrora a lei permitia a escravidão e isso era incontestável, também permitia crimes contra as mulheres, tolerância e agressões contra crianças, e hoje no que parece nossos olhos continuam fechados para tamanha estupidez. Não existe uma justiça correta, apenas leis e nada mais. Nossas leis não são corretas ou verdadeiras, é apenas algo que inventamos para tentar viver melhor. O pior e que esse manual é usado sem a censura, sem reflexão, o qual todos os casos passam a serem únicos, tratam o individual como universal, e querem transformar as leis que os próprios homens criaram em uma lei divina. Um homem fica atrás de um birô abrindo e fechando seu livro da lei – não há reflexão, existe apenas regra a seguir do que já foi escrito, e que nem mesmo ele colocou uma vírgula. Ainda há os defensores e acusadores, que surgem com seus mantos sagrados querendo esconder o caráter obtuso que neles habitam, pois nada fazem perante a lei que não seja contingente, convenções, e tratam isso como se fossem verdade, e a justiça se perde no mar de ilusões. Talvez pior crime haja em quem escreveu tais leis como verdades, pois sejam elas quais forem sobre o globo tem sua exceção, interesse, seu ponto crucial incerto, mas não é caso de falar sobre isso agora.

Ah, como somos pobres, pequeninos e miseráveis. Nossas leis de papel, nossa constituição e democracia que mudam de acordo com nossos interesses e que nem mesmo é o interesse de todos, papel pintado. E pensar que folhas escritas que podem ser rasgadas e destruídas tem mais valor do que o próprio homem. Mesmo quando a justiça não é tomada puramente por leis, mas regras que os homens criaram, como por exemplo, um jogo de futebol, onde a lei acontece no local e a olho nú, as falhas acontecem sempre e prejudicam muitos, simplesmente porque não somente a razão está presente, mas há sentimentos, pressão, corrupção, que tornam indigno o que é humano. Talvez só hoje entenda o que Nietzsche quis dizer quando falou desse “ódio de tudo o que é humano” e que esquecemos, não valorizamos, do homem que aprendeu tantas coisas menos a ser humano. Os maiores nomes da história da humanidade não foram os que obedeceram as leis, mas os que infringiram elas em algum momento, tais como Gandhi, Luther King, Tiradentes, Joana D’Arc, Sócrates, Jesus, entre outros. Por quê? Pelo prazer de transgredir? Não meus amigos, por buscarem algo de verdadeiro, de digno, de justiça, lealdade, fraternidade, de conhecerem a si mesmo e se verem como espelhos refletindo a imagens dos outros. O que poderíamos dizer dos homens das leis se tirássemos o seu anel do direito e déssemos a eles um anel de Giges, o qual teria o poder de ficarem invisíveis. Será que os mesmos iriam ser tão leais a tais mandamentos? Ou iria eles tirar proveito de seu poder como também tiram das próprias leis que criaram? As leis que beneficiam só alguns nem mesmo tem o poder e honra de ser chamada de leis, mas de utopia social, achismo social.

Agora em plena sessão pela copa do mundo de 2014 isso é bem claro, o desrespeito à lei pela própria lei. Ora, a lei no Brasil diz que é proibida a venda de bebida alcoólatra em ginásios, estádios e praças esportivas, mas querem mudar isso para que nos dias da copa aja uma exceção da lei, por quê? Preciso eu dizer... Reflitam amigos. As vantagens daqueles que criam as leis fazem com que elas mudem em seu benefício, se tornam como cartas de baralho sobre a mesa, e o coringa dentro de sua manga. Nossa lei baseada no hábito é uma piada, embora algumas funcionem nada podemos dizer delas em relação à moralidade, pois não se trata de uma questão moral, mas de hábitos e costumes. Nossa moral é às vezes tão egoísta que nem mesmo olhamos o ser humano a nossa volta, ignoramos, o tratamos com desdém e indiferença, e ainda nos julgamos melhores, sábios e donos da razão. Como?...A mesma lei que protege o mendigo o deixa apodrecido em alguma calçada, e também nós ficamos tão presos a lei que o ignoramos, damos a ele nossa indiferença, e o julgamos. A vida assim vira uma comédia moderna, que vulgos e pobres são julgados sobre nossos olhares perante os crimes que cometeram, enquanto sábios e intelectuais às vezes passam despercebidos, porém esses com muito mais culpa, pois esses sabem o peso da lei que criaram e o servem de guia, como também sabem como despistá-las.

Talvez o filósofo alemão Schopenhauer tenha razão, a algo de misterioso na moral, no simples fato de agir com compaixão, pois é uma dádiva de poucos. Se a compaixão é adquirida pelo hábito e isso dignifica o humano, é bem certo que esse hábito não temos, nem mesmo nas pessoas que se dizem santas, pois de fato estão mais preocupadas em leis sobre o regime religioso do que agir compassivamente em via da compaixão. Para sermos morais, dignos, virtuosos, agirmos com compaixão, não precisamos de religião, precisamos ser éticos. E assim mais uma vez esse nosso martírio por costumes nos cega a visão. Isso mostra como nossos costumes são frágeis perante o que se pode dizer de verdade sobre a moral, a qual a morte é em vista dos costumes alvo de benéfico e maligno dependendo da cultura. A pena de morte para alguns é merecimento via regra moral e o costume faz disso um hábito saudável. Em outros a morte é abominável cuja essência de vida deve prevalecer como bem maior. Assim os hábitos que nos guiam e nos orientam parecem imagens destorcidas, a qual a moral se esvazia em pretensões sem chegar a um firmamento. Assim o homem tenta alcançar a imagem da causalidade da natureza que também tem suas particularidades, via de regra, leis, mas que mudam como o vento, embora não notamos.

Mas você pode perguntar para mim, por acaso o universo não obedece a regras? Leis naturais? É evidente que sim, mas quem disse ao certo que essas leis e regras naturais são de fato hábitos a se repetir sempre? Os desastres naturais, cometas invadindo a atmosfera terrestre, destruição de planetas, são apenas exemplos, de que o universo como nosso planeta não é um hábito tão seguro. Posso Lembrar o filósofo Escocês Hume, que brilhantemente ignorou nossa tendência de descobrir o futuro pelo passado em sua crítica à indução. Temos mania a dados probabilísticos vindo de nossas observações, e dizemos com frequência que aquilo que aconteceu um número X de vezes certamente acontecerá X+1, mas como podemos de fato comprovar essa teoria? Hume faz um questionamento formidável: será que o sol nascerá amanhã? Como podemos ter tanta certeza disso? É obvio que não podemos ter, pelo menos, no que diz respeito até os momentos atuais à ciência. Em via regra, também a própria natureza desrespeita suas próprias leis, seus hábitos naturais.

Damos tanto créditos aos hábitos, que até mesmo sentimentos genuínos de afeição como o amor é mensurado e atribuído em seu nome. Alguns tornam hábitos sinônimos de amor, e esses são os débeis e egoístas que buscam conforto no outro como uma sombra projetada de seu querer. O amor é muitas vezes confundido com hábitos e necessidades que temos em conviver com alguém, nisso o amor se torna frágil e presunçoso e não algo salutar. Absurdo então seria pensar que Deus amaria pelos hábitos, pois se fosse esse o caso Deus amaria apenas alguns poucos que estivesse em conformidade de costumes de tradições religiosas e nada mais. Nesse caso, Ele jamais amaria iguais todos os seres humanos. Talvez por isso o filósofo alemão Kant ignore os hábitos como conduta moral, como também atribui o mandamento divino de amar ao próximo como a si mesmo a uma lei, e não aos hábitos e costumes. Para ele somente por uma imposição, uma lei, faria com que pudéssemos amar ao próximo como a si mesmo, nunca por nossa pura vontade e inclinação.

É bem verdade que poderíamos pensar: que o entendimento da lei não é o entendimento do que é o correto. Em outras palavras, alguém que tenha o entendimento da lei e percebe que foi contrario a ela, não quer dizer que ele ache a lei correta, apenas que ágil contrário à lei. Talvez isso justifique o caso de pessoas que já desobedeceram à lei diversas vezes mais nunca admitiu o seu erro, apenas a admissão que foi contrario a lei.

Por fim, estamos em um paradoxo incansável em sermos dominados pelos hábitos e com isso ter uma espécie de segurança, ou termos que nos afastar dos hábitos pela consciência de que eles também representam perigo. Ou mesmo saber ao certo quais hábitos seria os corretos, pois diante de uma vastidão de hábitos adquiridos, desfeitos, vistos, negados, fica difícil assumir qual o que poderia ser os melhores para nós, para todos. Qual cultura poderia ter os hábitos melhores? Quais poderiam ser desprezados? A vida talvez seja como a arte, um processo de criação contínua como o devir de Heráclito, e teríamos apenas a ilusão do que é permanente. Talvez quando o permanente estiver nos sufocando é sinal que temos que criar, porque o mundo muda a todo instante debaixo de nossos olhos, cria e recria, “nada permanece igual a si mesmo”, o mundo é uma metamorfose inesgotável, e desse modo, os hábitos como os costumes precisem ser refeitos, pois neles não há verdade, apenas a fantasia que nos guia a viver. Também a lei que os homens criaram devem acompanhar as mudanças de tempo e espaço, juntamente com a reflexão e a razão, pois senão fica caduca e morre querendo falar.

O fato é que vivemos até hoje por meio desse senhor: o hábito. Esse senhor que criamos e que é fruto de nossos desejos, de nossas conveniências e segurança, e que também é fruto de nossos fracassos e ambições. Mesmo assim, ele ainda impera como um deus astuto e soberano diante da terra. Entretanto, nossos anseios por mudanças por algo que possa fugir da rotina levam-me a deixar uma pergunta, se hoje fosse seu último dia na terra, você faria os mesmos hábitos, seria você escravo desse senhor?

TAS
Enviado por TAS em 31/03/2012
Reeditado em 06/04/2012
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