Bolo de Fubá com coco

No final dos anos 70 os olhares, corações e mentes se arregalavam pelo país afora. Hora do basta! Já bastava de tempos nublados, ameaçadores . E tinha a maldita censura, medo, rancor imensas interrogações. Haviam inventado o pecado e se esquecido de inventar o perdão, bem dizia o Chico Buarque. Um brado retumbante ia se formando e a vontade visceral de liberdade, de criatividade e de primavera ia se definindo nas vozes de uma parte imensa da sociedade. Com medo, mas a voz ia reverberando como ondas de paixão por existir e sonhar.

Eu começava a ler e a gostar muito do Henfil, o irmão do Betinho, o sociólogo exilado no Canadá que havia feito propostas interessantes para a redução da miséria no Brasil. O Betinho entendia de sociologia como ninguém. Fazia dessa ciência uma magnífica arte de compreender o humano, transformando-o em cidadão participativo sem nenhuma forma de paternalismo ou piedade. Ele compreendia que o agir cidadão e a busca da democracia, de um governo legítimo, eram os mecanismos possíveis para se construir um país justo, sem fome e com pessoas com identidade. E o Henfil – o Henrique de Souza Filho – através das suas charges e textos que mesclavam humor e crítica, provocou muitas reflexões sobre o nosso ser na sociedade e no tempo.

Um dos primeiros livros que li do Henfil foi “Diário de um Cucaracha”, relatando a sua primeira experiência nos Estados Unidos. E quando viu a neve pela primeira vez, resolveu escrever para a mãe, a dona Maria, contando, com satisfação e entusiasmo sobre aquela descoberta. E dizia : “fizemos até um bolo de fubá para a gente comer vendo a neve”.

A partir daquele dia, três décadas atrás, eu percebi: bolo de fubá só pode ser para momentos mágicos.

Foi isso que senti quando conheci a rua Adoniran Barbosa. Dia ensolarado de um janeiro que prometia. Conheci a rua e senti, suavemente, um cheirinho de café vindo de uma daquelas casas modestas dos anos 50. Imaginei a parceria desse café quente com o bolo de fubá ao som de “trem das onze”, sentindo o aconchego de um samba manso e eterno.

Bolo de fubá me lembra um dia da infância, quando alguns parentes passavam alguns dias no nosso modesto sobrado no Cambuci. Para uma daquelas tardes a minha mãe resolveu fazer um bolo para o café com as visitas. De repente, nós, crianças, descobrimos o sumiço do bolo. O mesmo estava prestes a ser jogado fora porque, ao desenformar, se quebrou em mil pedaços. Minha prima e eu resolvemos experimentar um pedacinho e o bolo estava a maior delicia dos últimos tempos. E pouco a pouco íamos até o quartinho de empregada, onde o mesmo se encontrava coberto com um guardanapo, e pegávamos alguns bocados, os farelos iam sendo apertados pelos nossos finos dedos infantis e comíamos ali mesmo, escondido da tia que nos visitava. Ela não poderia ver o resultado desastroso da empreitada da minha mãe. Isto porque a tia Lea era exímia cozinheira e essa vergonha a minha mãe não queria passar, não.

Ontem resolvi também fazer um bolo de fubá. No meio da receita revi todo o meu passado, uma trajetória que agora percebo que foi rápida demais. E fui revisitando esse passado com a certeza de que uma história se faz com inúmeros projetos, sonhos, conquistas e frustrações. Fui lembrando que sofri demais sem precisar e por coisas que nem aconteceram. Eu nem imaginava que conseguiria tanto com as limitações tão cruéis de aprendizagem no passado. Também não imaginava que conseguiria enfrentar milhares de alunos ao longo de 30 anos de vida profissional. Das salas de aula tive alunos extraordinários, competentes, parceiros, companheiros nos sonhos. Tive alunos lindos por dentro, com visão e compromisso social que deixaram uma luz de esperança na minha alma para sempre. Tive outros - felizmente bem poucos – que me abstenho de comentar.

Tive – e tenho - amigos por inteiro. Poucos, mas com a doçura e a cremosidade de um chocolate em fase de elaboração final. E tenho uma amiga que entende a importância de me entregar uma lata de bombons Ouro Branco, exatamente o chocolate que era o meu grande sonho nos primeiros anos da infância. E o melhor: de surpresa. Outra amiga que atravessou uma boa parte da cidade de São Paulo de ônibus para me encontrar e me abraçar quando soube do falecimento do meu pai ... Um amigo, que veio do Canadá para conhecer o meu filho.

E demorei demais para compreender a grandeza que é o cultivo da fé, grande festa da alma. Só há pouco compreendi que, para rezar, é preciso calar e ouvir o que Deus tem a dizer.

Demorei para perceber que a suavidade e a quietude das montanhas são imensos sinais que Deus dá para percebermos que não é impossível ultrapassá-las. Elas simplesmente existem no seu silêncio, na sua exuberância e verdade, mas que é preciso andar por elas com a calma dos sábios e nunca com a indelicadeza e a dureza que o cansaço provoca.

Fui aprendendo que todo o esforço da vida requer disposição para querer viver mais e saber que as ondas do mar vão e vêm não se importando se a gente sofre ou não, se algum parente se foi ou não. As ondas não se importam. Elas só sabem da plenitude que é ondular, independente do que a humanidade faz.

O tempo do bolo de fubá foi suficiente para eu fazer as pazes com o passado e fui inventando um pouco mais, incrementando a receita com mais erva-doce e imaginando quantas pessoas poderiam repartir comigo aquela delícia com café Moka bem quente. Lembrei-me da vó, da minha sogra, da prima Maria, da tia Norma, sempre presente na minha estrada, mas que também já se foi.

É na simplicidade que as pessoas se encontram verdadeiramente. Sem esconderijo, sem maquiagem. As pessoas simplesmente são e não têm vergonha da sua história construída, dos tempos de aprender algum artesanato para ajudar no sustento da casa, nos tempos de dedão esticado no campus da USP para pegar alguma carona e evitar o gasto de mais um passe, do tempo de inventar um doce e tentar vendê-lo porque isso seria também importante. Ter aquele pedaço de felicidade ao pensar em não fugir dos compromissos e das amarguras que tantas vezes vêm com muita força e com grande determinação.

Não tem jeito: para viver em plenitude é necessário se apaixonar pelo canto, pelos olhares e sorrisos, ter paciência com as lágrimas. Elas vão secar. Compaixão com os que sofrem, respeito pelos mais velhos, amor pelo conhecimento, a satisfação em partilhar uma comida, a beleza do abraço apertado, o esquecimento das ofensas e traições.

Mas, para viver intensa e amorosamente, enfrentando os obstáculos tão duros, estradas tortuosas, desafios incompreendidos, noites tão mal dormidas, aquela solidão profundamente doída é necessário o bolo de fubá com coco... e café Moka bem quente , além de uma enorme disposição para continuar sorrindo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/04/2012
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