Na Vila Sônia.

Eu nunca tinha ouvido falar nesse bairro paulistano. Sabia apenas que era bem distante de onde eu morava, na Aclimação, região central da cidade. E foi em 1979 que tive o privilégio de conhecer esse bairro interessantíssimo, com forte presença japonesa. Foi o ano em que comecei a namorar o meu marido, nascido e criado no bairro.

Logo na primeira vez que ele esteve na nossa casa, falou onde morava. O meu pai pôs a mão na cabeça literalmente – e exclamou; “é perto da Regência? “ O meu Nelson respondeu: “É prá lá da Regência”. O meu pai parece que branqueou.

Convenhamos, era difícil mesmo. O meu pai, lá por 1956, saía do bairro do Paraíso e ia até a Regência, a fábrica de roupas masculinas que atendia muitas lojas finas da cidade. Eu nunca soube como era esse trajeto, de terra batida e, com certeza, uma infinidade de buracos e de surpresas. Isso porque a fábrica era situada na av. Francisco Morato, na estrada que liga São Paulo ao sul do país.. E o meu pai ficou estarrecido com a distância.

O meu primeiro contato com o bairro foi no dia em que fui prestar serviço numa gráfica. Na época eu trabalhava na imprensa alternativa, de oposição à ditadura. Como éramos sempre perseguidos pela Polícia Federal, tínhamos que ir procurando gráficas que aceitassem enfrentar a repressão e rodar os exemplares. Teve o tempo em que trabalhamos na sede dos Diários Associados, na rua 7 de abril. Depois fomos parar na rua dos Italianos, espaço do operariado, no bairro do Bom Retiro. Essa experiência me remeteu ao passado, o século XIX, tempo da grande imigração. Mas na vila Sônia trabalhamos apenas um dia porque logo a policia chegou. Voltei para casa à noite e, em função do susto do meu pai em relação à distância, saí de lá morrendo de medo, achando que não iria chega em casa nunca.

Mas foi na vila Sônia que fui acolhida amorosamente pelos familiares do meu marido. Na primeira visita o meu sogro me recebeu e logo disse que na família era assim “um por todos e todos por um”. Embora eu não falasse nada, obviamente percebi que era essa a família que eu precisava ter.

Na simplicidade, muita união e simpatia . Lá morei nos dois primeiros anos de casada.

Na vila Sônia eu conheci várias pessoas na condição de felicidade e acolhimento que eu até então desconhecia. Muitas memórias fascinantes. O primeiro cinema, a chegada do telefone, a dificuldade de acesso ao ônibus... tudo isso me foi contado, porque eu vivi ali quando os recursos já eram disponíveis. Foram ali as primeiras festas de aniversário do meu filho, com a família em peso. Foi naquela casa que a família ia se reunindo para conversas ótimas, risonhas, regadas a bolos, tortas e tantas outras delícias e as tradicionais fotografias no momento de quase despedida. E os agregados eram muito bem recebidos. Todos. Foi nessa casa que, na reforma recente, encontrou-se cascas de ovos intactos após a retirada do piso de madeira – tudo da década de 60, quando a minha sogra ainda criava galinhas no quintal. Numa das vezes, o meu Nelson ainda pequeno, sentou-se no degrau que saía da porta da cozinha e passou a acariciar tristemente a cabeça de uma ave, dizendo a ela: ”pois é, galinha, daqui a pouco você vai para a panela... mãe, a senhora gostaria que alguém cortasse o seu pescoço e colocasse a senhora numa panela???” Obviamente a resposta foi: ”eu não”. Só sei que a minha sogra desistiu da criação.

Foi ali que conheci uma padaria mais simples e com pães doces deliciosos, principalmente o de coco. Fiquei sabendo que o primeiro pizzaiolo do local era o “bigode”. Passei a adorar os pasteis da feira, aquela feira em que fiz questão de comprar alguns pares de sandálias.

E também fotografei o ônibus, cujo número era 6245. Agora mudou. Na verdade eu tinha sorte ao tomar esse ônibus, provocando uma gostosa manifestação de incredulidade do meu marido. Até hoje ele fala que o Vila Sônia me espera..

Aprendi a apurar a sensibilidade em relação às coisas simples, a perceber o valor das inovações, a alegria das grandes edificações, o orgulho do meu sogro pela melhoria do bairro e como era bom passear com ele onde antes era uma chácara e agora um complexo de edifícios de luxo – o Quintas do Morumbi.

A vila Sônia tem luar e, na casa da família, se respira o forno a lenha da pizzaria do lado e, antes de os olhos alcançarem a Paulista, no meio, a mangueira faz uma tênue cortina verde, espaço em que as maritacas se deleitam da doçura do fruto. Rua silenciosa. Além da mangueira, limoeiro, pitangueiras e goiabeira no quintal.

Foi dali que o meu sogro saía muito cedo para trabalhar com escultor. Também plantou rosas no jardim. Ali minha sogra ensinou a costurar e a criar os filhos no trabalho. E tirou água do poço para o cotidiano.

Na casa da vila Sônia, existe uma memória aderente às paredes, aos muros, às pessoas que viveram ali e não estão mais. Foi ali que, num aniversário do meu filho ainda criança, a sala virou pista de dança. Era valsa e todos dançaram com muita alegria e com direito a filmagem. Com certeza, a beleza da simplicidade que carrego na alma vem dali, da casa com uma janelinha inclusa na porta da frente, a grande mesa retangular de madeira na sala de jantar acolhendo quem chegasse. E muitos iam sempre chegando com sorriso e noticias. Espaço das memórias, das trocas de receitas de chocolates, do conversar muito. Lugar onde o medo não havia. Lugar de esperança e de amor sereno.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 15/04/2012
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