Anitápolis e dona Ester

Anitápolis é um município catarinense distante 108 km da capital e está a 600m acima do nível do mar.

Cidade pacata e com muito charme, a população é muito pequena. A economia ainda continua assentada na atividade agrícola, originalmente desenvolvida pelos desbravadores de origem germânica do século XIX .

Anitápolis está encravada na Serra Geral, serra essa de exuberância única, proveniente da ação vulcânica de muitos milênios atrás. Apresenta campos de altitude, florestas de araucária e diversos rios que formam essa paisagem espetacular e poética, muito inspiradora. As elevadas escarpas constituem uma barreira natural onde se dá a transição entre a mata atlântica e os campos de elevadíssima altitude.

A simpatia daquela pequena cidade é contagiante. A estrada silenciosa com suas curvas acentuadas convida a inúmeras reflexões sobre a existência , sobressaindo a importância do contemplar. Eu jamais vira tanta beleza , um imenso convite à introspecção provocando uma imensa curiosidade para compreender mais os desafios e espetáculos da natureza.

Na praça central, pequenas padarias exibindo seus pães deliciosos e muito macios. O único restaurante da cidade não tinha tanta variedade para oferecer, mas o que importa?

Na porta de algumas casas, ainda a presença da raspadeira, aquela alça de ferro fincada no chão, posicionada bem na entrada da casa para se tirar da sola do sapato o excesso de terra. Na minha infância eu adorava limpar os pés nas raspadeiras. Propositalmente eu pisava mais fundo no barro para ter mais o que retirar. Gostava muito quando o pé se carregava a ponto de eu escorregar e achava um charme quando o barro vinha acompanhado de alguma folha ou pedaço de capim.

Meninos jogavam bola na mesma praça. Faziam marcações de traves com as suas sandálias havaianas até que apareceu um cachorro meio divertido, abocanhou um pé da sandália pelas tiras e foi calmamente embora como se não fosse nada.

Os garotos tiveram um bom trabalho para reaver aquele pé. Resolutamente e em bando foram atrás do animal: “Volta aqui, seu cachorro desgraçado. Larga. Larga...”

Batemos algumas fotos na tentativa de imortalizar o cãozinho, aliás simpaticíssimo e que resolveu nos acompanhar no passeio por um tempo razoável.

Há anos eu desejava visitar a região. Uma curiosidade amorosa que foi se aprimorando ao longo de uma década. Tive o santo privilégio de conhecer a segunda pessoa nascida em Anitápólis, a dona Ester. Conheci essa senhorinha de uma gentileza singular quando eu estagiava como acupunturista no hospital de Santo Amaro da Imperatriz, também interior catarinense. Ela foi nos procurar e, como eu sempre fui apaixonada pelos mais idosos, tomei a iniciativa de atendê-la.

O atendimento era ambulatorial e, nesse caso, tínhamos que atender mais de um paciente por vez. O esforço para que o atendimento fosse de qualidade era imenso e os pacientes saíam sempre muito bem dali. A dona Ester, novata como paciente da Medicina Tradicional Chinesa, tinha medo de agulhas e então eu resolvi atendê-la com exclusividade . Ficávamos conversando mais de meia hora a cada sessão e ela, sempre sorridente, contava os seus casos.

Ela chegava mansamente e com um sorriso calmo e confiante de sabedoria estampado no olhar. Sempre depois do banho, cheirando a alfazema, chegava disposta a se ajudar a viver mais e ainda melhor.

Dona Ester havia sido a cartorária de Anitápolis nem sei quantas décadas atrás. Certamente contribuiu e muito com a formação histórica da cidade e foi presença marcante na vida dos seus pares.

Ela me contava que ia a cavalo mesmo, carregando o seu livro de registro, para fazer os casamentos a longas distâncias e que o animal era tão acostumado a realizar alguns trajetos que sabia exatamente onde tomar posição para atravessar um rio. Algumas vezes ela chegou a cair com o livro na mão. Mas levantou-se tantas vezes quantas foram necessárias e fez a vida com tamanha força e dignidade que conseguiu criar os três filhos sozinhas “naquele tempo” em que a situação de mulher separada não era nem um pouco fácil, principalmente no interior.

Foram várias as vezes que eu atendi essa senhorinha miúda e de uma generosidade gigantesca que me contava casos antigos, inclusive da política local, misturados com doçura e bom humor.

De volta do passeio a Anitápolis com a minha família, um senhor de idade avançada pediu carona para ultrapassar uma parte bastante íngreme da estrada, logo na saída da cidade. Paramos o carro. Era o Sr. José, com sobrenome alemão que não consegui memorizar. Contou-nos alguma novidade sobre a tão recente pavimentação da estrada que leva ao município, antiga promessa de campanha de vários candidatos. “Agora sim - dizia ele com orgulho e entusiasmo - ficou bem melhor”.

Eu contei ao seu José que eu havia conhecido a segunda pessoa que havia nascido na cidade. Eu disse que era a dona Ester. Rapidamente ele disse: “ela fez o meu casamento”.

Então o seu José me contou que ela faleceu recentemente com 100 anos de idade.

Foi um prazer indescritível, dona Ester, poder conhecê-la. Eu pude conversar, aprender, rir, abraçar a senhora, sentir o seu doce cheiro da Alfazema e saber que, registrando os casamentos, a senhora consagrou sonhos e construção de novas histórias. Registrando nascimentos, a senhora ajudou a abrir espaços para novos horizontes e ensinou a escrever a saborosa poesia do trabalho, do esforço e da fé . E quando teve que registrar falecimentos, com certeza sabia que a morte é a única certeza de quem vive. E que é tão natural quanto nascer.

E a sra. caminhou por aquele espaço geográfico tão espetacular deixando marcas delicadas de sorriso e amizade em corações muitas vezes amargurados pelas perdas, mas sempre com uma doçura meio quieta de esperança e de trabalho, muito esforço, a ponto de conseguir criar os filhos sozinha ... “naqueles tempos”.

Um dia, dona Ester, a gente há de se reencontrar, se abraçar e se sorrir. Com novos casos interessantes, saborosos e com a suavidade do cheiro da alfazema.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/04/2012
Código do texto: T3620351