O mundo ia acabar... e não acabou

Ficou decidido: o mundo ia acabar em 1999. Não tinha jeito: o mundo não chegaria ao ano 2000. Poderia acabar pelo fogo (ou pela água? Eu não me lembro mais) , mas que acabaria, acabaria. Não adiantaria mais sonhar, acreditar, buscar alguma coisa, pensar num futuro brilhante, planejar novas conquistas, novos amores e aventuras. Ia acabar e ponto final (literalmente).

A imprensa começou a trabalhar esse assunto com freqüência cada vez maior assim que a data ia se aproximando. Teve matéria foi explorada até no Fantástico . Era prá acabar em agosto, mas eu não me lembro o dia, mas era às 8:15.

De início achei engraçado esse tipo de conversa, as especulações, a atenção dispensada ao assunto. Depois parei de ler essas matérias. Quanta encenação! Eu imaginava o funcionamento da cabeça das crianças ao terem que lidar com o medo, uma angústia invisível e que a mídia explorava à exaustão.

Eu já vivia em Florianópolis e lecionava num colégio tradicionalíssimo, jesuíta, da mais alta elite catarinense, colégio esse a caminho do seu centenário.

Com a proximidade de agosto comecei a perceber que aqueles jovens estavam ficando cada vez mais pálidos, pensativos, mais calados. Em conversas com colegas comecei a ouvir o que eu não conseguia admitir: eles estavam com medo.

- “Peraí, medo?????”

- “É. MEDO. Dizem que o amigo está com medo, não eles”.

Adolescente é engraçado em algumas situações. Que dificuldade em admitir suas fraquezas, suas angústias e hesitações! O outro tem medo. ELE NÃO.

Comecei a brincar com os meus alunos, fazia alguns comentários e, com uma seriedade até preocupante, cheguei a dizer:

- “No dia do fim do mundo estaremos juntos. Na mesma hora (8:15) estarei aqui com vocês nessa sala. Vamos juntos para o além. Não existirão mais provas, trabalhos, seminários. Não iremos sofrer mais ... vamos para o Alto”.

Silêêêêêêêêêncio geral.

Eu tinha um aluno nessa sala que esbanjava simpatia e boa educação. Rostinho redondo, risonho, prestativo, eu gostava de brincar com ele. Como eu, ele adorava chocolates e, dias antes do fim dos tempos, eu disse a ele:

-“Faz assim: no dia do fim do mundo, traga um chocolate para mim e outro prá você. Assim, a gente morre feliz, comendo um Sonho de Valsa”.

O rapaz gentilmente sorriu.

Chegou o dia do fim do mundo.

Eu não me lembrava mais que tinha falado sobre chocolate. Entrei na sala, cumprimentei a turma e o fofinho logo veio em minha direção, abriu a sua jaqueta jeans e sacou dali um Sonho de Valsa e me entregou. Agradeci, sorridente, mas disse que eu estava brincando, que ele não precisaria se preocupar. Coloquei o bombom sobre a mesa e comecei a discorrer sobre o assunto preparado para aquela aula. O silêncio estava sepulcral. Eu ia percebendo que eles não acompanhavam o conteúdo, não escutavam nada... e eu lá , trabalhando.

7:40 - o aluno começou a desembrulhar o seu Sonho de Valsa. (Ele deve ter pensado: eu vou comer o meu chocolate... por via das dúvidas...)

8:10 – solenemente comecei a me despedir:

- “Bem está chegando o momento. Nada mais a fazer (e o silêncio continuava sepulcral).

Vamos para o encontro com o criador! Percebo uma nuvem de gafanhotos que vem da Beira-mar.” .. Caramba! Eles olharam seriamente para a janela...

“Vamos contar: 5..... 4....3.. PERAÍ.... deixa eu arrumar o meu cabelo para ouvir melhor a hecatombe” e coloquei uma mecha atrás da orelha, fazendo a mão em concha para ouvir melhor. “2.... 1...”

Silêêêêêêêêêncio de novo.

“Uai, não aconteceu... Faiô”.

Pálidos, resolveram conter a emoção fingindo coragem. Depois do aborto da hecatombe, fechei solenemente a porta e falei sério com eles: “onde já se viu, filhos de uma elite pensante, pré-universitários, acreditar em valores medievais em pleno século XX, numa capital de um estado que vai bem???? Vocês que entendem um pouco de ciência e de religião, alunos do mais respeitado colégio de Santa Catarina... Ora, faça-me um favor...”

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 28/04/2012
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