O nome dela

Eu sinto muito, mas sinto tanto não me lembrar do nome dela. Ela foi importante na minha vida, na minha tentativa de compreender um pouco mais do humano. Com serenidade e calma, conversávamos às segundas-feiras pela manhã, invariavelmente.

Por ela tentei amar um pouco da alma nordestina, sofrida, corrida da seca. Tentei compreender o que seria uma demonstração de coragem sem limites no abandonar o próprio chão, os pares, a história de vida, o choro da fome, o olhar amargurado e o correr para São Paulo à procura de algum trabalho. Qualquer trabalho!

Essa senhora negra, responsável pela faxina de uma unidade de um pré-vestibular em que eu trabalhava, me contava, sem constrangimento, sobre a sua sorte. Eu me interessava verdadeiramente por ela.

Tempo de mudanças tão desejadas. Início dos anos 80 e a ditadura saindo pelo ralo tal como um verme sem ter onde se hospedar. Queríamos saber de todas as coisas. Éramos atentos às pessoas, às palavras, gestos e emoções. Era chegado o momento de descobrirmos o Brasil, um país que começava a deixar de lado as amarras da sandice, o olhar embaçado pelo medo, a voz que queria tanto ter o se próprio tom. O tempo era de arregaçar as mangas e construir o novo, o belo com uma alegria juvenil. Era hora de buscar e compreender. E lá estava ela a faxinar e sempre pronta na sua simpatia para uns dois dedos de prosa.

Ela havia sido abandonada grávida em Vitória da Conquista. Evitou me contar do sofrimento, economizado lágrimas e velhas emoções amargas e sem solução. Não compreendia como a filha e o genro tinham problemas se na casa deles tinha uma torneira. Não me contou com conseguiu economizar uns trocados para a passagem de ônibus. Mas chegou surpresa com as possibilidades da cidade nova. Tempos de Juscelino, dos “50 anos em 5 “, em que se perguntava na própria rodoviária se o retirante tinha indicação para emprego ou não. Foi ela que me disse que os homens preferiam logo se empregarem nas fábricas e as mulheres, com medo da cidade tão gigantesca, preferiam as casas de família.

Essa senhora nem tanto falante, educada e gentil, havia trabalhado muito e me contava com a simplicidade dos sábios. Apenas contava.

E eu sempre gostava de levar um pão de queijo para ela. Eu comprava ali mesmo, no comércio próximo à estação do metrô. Agradecida, dizia que eu deveria comprar só pá mim porque era caro. Calmamente comíamos juntas aquela gostosura para o direito a mais um dedinho de prosa.

No bairro de Santana, zona norte da cidade, essa senhora, que quando trabalhava como doceira, fazia muito brigadeiro, me ensinou a amar as gentes do nordeste. Mas ela não tinha exatamente essa pretensão. Ela simplesmente era humana, doce, cordial e trabalhadora.

Gente que ajudou a edificar uma das maiores cidades do mundo com um suor e fome abundantes.

Pessoas que, com o pranto da saudade, da insegurança, da incerteza e do medo, deixou irrigar o seu chão tão castigado pela estiagem sem fim.

E teve que buscar sustento numa cidade às vezes tão ácida, tão cruel.

Gente que enfrentou distâncias imensas para chegar ao trabalho e gastou uma parte enorme do salário mínimo para garantir as passagens de trem ou de ônibus. Gente que foi obrigada a comer muito pouco por isso e a enviar cartas para os que ficaram. Mensagens mal escritas, com endereços vagos, contando alguma vitória, exalando alguma esperança.

Ela era um recorte de uma gente que se abraçava a alguma fé para se manter na firmeza que a vida exigia.

Obrigada às gentes do nordeste. Gente que adotou uma cidade monstruosa no tamanho, na cultura e também na aspereza das relações humanas. E não perdeu as raízes, o falar macio com sua sonoridade peculiar. Que trouxe na bagagem muito brio, esforço desmedido, desejo de partilha, o gosto pela dança, uma musicalidade festiva e um olhar inconfundível de fé e devoção. Gente que construiu arranha-céus e não pôde morar. Construiu escolas mas o filho não pôde se matricular. Ajudou a edificar hospitais, mas na hora do tratamento teve que correr para a benzedeira amiga da comadre. Ainda teve que aturar descaso por parte de uma suposta elite cultural.

Que, pela grandeza de suas almas, saibam perdoar a nossa arrogância !

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 01/05/2012
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