O homem que não queria ser máquina

“Shhhhhh”, o chaleiro cantava. Era o som mais próximo do canto de um canário selvagem que Rodrigo Santos tinha a sua disposição. O barulho do motor dos primeiros carros deixando suas casas para mais uma jornada de trabalho não estava aos pés da melodia de uma nota só que o chaleiro cantava para ele. As curvas da lataria dos carros da classe média também não se comparavam ao gracioso formato redondo de seu chaleiro, que agora chiava mais alto. Rodrigo não gostava tanto do seu chaleiro pelo fato do objeto ser um aspirante a cantor redondo de metal, mas pelo que o chaleiro dava a ele. Um café grosso e forte, puro e preto, o combustível para seu corpo que temia a decadência. Para ele era estranhamente poético acordar de manhã com o sol dando bom dia, com seus primeiros feixes alaranjados iluminando coincidentemente o fogão, e com aquela brisa fria quase que proposital do destino entrando pela janela, de modo que somente um café quente pudesse reconfortá-lo ao aquecer o peito.

Rodrigo viu o vapor saindo pelo bico empinado do chaleiro. Tão empinado que parecia um gesto esnobe, dizendo “sem mim, você nem começaria o seu dia”:

“Realmente, não começaria”, sussurrou Rodrigo.

“Eu sei que não”, retrucou o chaleiro. “Mas tem outra coisa que você tem que, sem ela, também não começaria o dia, não é?”, perguntou o chaleiro franzindo as sobrancelhas. Isto é, se ele tivesse sobrancelhas.

“E você tem medo de perder”, ajudou o açucareiro, como se estivessem brincando de charadas.

Obviamente essa não é uma conversa comum que os trabalhadores têm ao acordar. O instinto de homem-máquina é esquentar o café sem nem ao menos dar bom dia para o chaleiro (imagine quantos dos chaleiros sofrem de depressão?), ler a manchete do jornal (que foi colocado na sua porta por outros homens-máquina que provavelmente nem chaleiro tem) e sair para homem-maquinar. Mas Rodrigo não gostava disso. Não gostava do termo, não gostava da rotina e muito menos das condições. Naturalmente, se fosse uma pessoa normal ele apenas seguiria a vida resmungando como não gosta das coisas. Mas Rodrigo não era normal. Ou melhor, ele não queria ser normal, e para isso borbulhava com todas as bolhas possíveis em idéias e divagações fantásticas. Não queria viver aproveitando as pequenas coisas, como tanto ouvia, mas das grandes coisas. E se não as tinha, então criava. “O homem criativo é a criança que sobreviveu”, costumava dizer.

E o que ele tinha medo de perder? Se perdesse algo, poderia criar de novo. Ou talvez fosse algo além de sua imaginação, ou algo tão aquém da sua imaginação que ele imaginava que fosse além, ou algo que... A pergunta do açucareiro parecia não fazer sentido. Rodrigo arricou:

“Hum... o Bom Dia Brasil? Esse programa é mesmo muito bom e...”.

“Não!”, interrompeu, do televisor, o apresentador daqueles programas rurais que passam de manhãzinha, “isso você assiste em qualquer TV. Pense mais um pouco”, disse com uma expressão cativante e um bigode que balançava ao gesticular.

Que objeto seria tão importante para ele? Rodrigo sempre foi tão simples em suas necessidades que nem cinco minutos de introspecção ajudaram a lembrá-lo o que ele não começaria o dia sem.

“Bobinho”, disse a porta do seu quarto “estamos falando dela...”. E a porta se abriu levemente com a brisa, o suficiente para mostrar os pés de uma moça embrulhada nos lençóis. Ah... a moça. Ou, para ele A moça. Em seus dias mais ousados costumava dizer que Romeu e Julieta era só o rascunho que Shakespeare fez para a história deles. Bastava ela pare ele não ser mais máquina.

Athos Krochensko
Enviado por Athos Krochensko em 11/05/2012
Código do texto: T3662847
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