Guizos da Inocência

Foi em um hotel em Penedo, cidadezinha montanhosa que faz parte do Parque Ecológico de Itatiaia, aqui no Rio de Janeiro. É uma colônia finlandesa, com todos aqueles encantos típicos deste povo de cultura tão distinta, quase na divisa com São Paulo.

Íamos lá desde 1991, ainda sem filhos, tamanha foi a paixão sentida por aquele lugar.

O ano era 2006 e viajávamos em família, nas férias escolares das crianças.

Era verão, mas é comum nesta região que possamos sair ainda com um casaquinho à noitinha e fazer um delicioso passeio ao Shopping do Papai Noel ou à Casa do Chocolate.

Meu filho mais velho tinha onze anos na época. Hoje, ele tem dezessete.

Em um certo dia, demos uma volta pela cidade para almoçar, fazer compras, tomar o nosso sorvete finlandês maravilhoso, mas retornamos logo ao hotel porque desde cedo se anunciava uma tempestade. A família, então, se dividiu. Meu filho de nove anos foi para o quarto com o pai e eu fiquei em um dos salões do hotel. Havia uma grande área externa separando nosso chalé deste salão, lindos caminhos, jardins, piscinas, etc. Dali, desfrutávamos de uma visão absurdamente linda das encostas verdes das montanhas. Toda aquela mata atlântica intocada tinha um perfume marcante e uma inesquecível diversidade de tons de verde.

Quando eu e Leonardo nos sentamos no salão, pegamos material para ler, mas logo paramos. Não querendo ver Tv nem nada mais, pedimos chá, torradas com manteiga e geleia e bolo.

A esta altura, o céu estava se precipitando sobre nós, parecia que ia anoitecer às três da tarde. E após uma sessão de ventos fortes, raios e trovões, a chuva começou a cair. Muito forte. Nós dois ficamos só apreciando aquele espetáculo da natureza, incluindo o cheiro da terra molhada e o balanço das copas das árvores, numa coreografia de arrepiar. Uma mistura de temor e fascinação me invadiu. Eu só sabia ficar em silêncio.

Quando, enfim, nosso chá chegou, meu filho começou a abrir seu coração a respeito da estranheza de suas próprias reações diante da vida. Perguntei o que ele vinha observando e a que se referia.

Ele me disse que, havia algum tempo, não sentia mais a natural e pura alegria do seu passado. Que a sensação de sorrir e sentir leveza por realizar algumas coisas não estava mais acontecendo.

Vi ali, diante de mim, um ser humano constatando as primeiras mudanças, e elas não estavam passando em branco.

Desde que eram bem pequenos, tínhamos o hábito de levar seus travesseiros de vários tamanhos e alguns brinquedos, pra que eles se sentissem mais confortáveis e aninhadinhos no banco de trás do carro.

Continuei atenta e estimulando sua fala.

Leonardo então me contou o que vinha acontecendo nos últimos tempos. Durante nosso trajeto de casa até Penedo, ou em passeios maiores, ficava no banco de trás com o irmão repassando toda a sensação gostosa do aconchego, do se sentir protegido. Mas só conseguia na memória, não mais fisicamente ou psicologicamente.

Disse que, naquela viagem, 'tentou' muito. Que buscou no fundo do coração. Que tentou a conexão com aquele sentimento, com aquelas sensações, mas que elas não vieram ao seu encontro. Ficaram lá, em algum lugar da sua história vivida.

Fiquei um pouco angustiada ao ouvi-lo mencionar tamanho esforço. Ao mesmo tempo orgulhosa por testemunhar seu amadurecimento.

Usei a palavra 'resgate' com ele. E ele respondeu prontamente que sim. Ele entendeu o que era 'resgatar', logo fez sentido.

Em meio ao som da chuva pesada e do aroma que exalava, estávamos nós dois... nosso chá quentinho... nossos pedaços de bolo... fomos colocando tijolinhos de nossa emoção e racionalidade ali, tentando compreender o momento que ele atravessava, tão importante e, de certa forma, doloroso.

Em outros acontecimentos ele falou ter sentido o mesmo. Noite de Natal foi um dos que citou.

Foi então que relembrei com ele um filme que que tanto havia nos emocionado: "O Expresso Polar", de Robert Zemeckis.

Apesar de simples, traz uma mensagem singela e bela.

Tudo acontece em torno da noite de Natal. O menino retratado não acredita mais em Papai Noel e não consegue mais ouvir um determinado guizo, enquanto a irmãzinha menor ouve e isso a faz alegre, com uma imensa felicidade.

Então, uma viagem mágica, feita numa locomotiva a vapor guiada por Tom Hanks, levaria o garotinho ao Polo Norte, onde um mundo diferente se revelaria para ele e modificaria algumas de suas convicções.

Eu perguntei ao meu filho se ele sabia o que aquilo significava. A resposta foi 'sim', porque já havíamos conversado muito na época do filme. Sempre fizemos isso.

Ele se sentia tal e qual o menino do Expresso Polar. Não ouvia mais alguns 'guizos', porque começava a perder o que pode trazer a felicidade mais livre, simples e pura desta vida: a inocência.

Peguei em suas mãos e o abracei, sentindo minha pulsação e a dele se misturarem. O nosso doce momento iria ficar para trás, com a velocidade da luz, eu bem sabia. Graças a Deus, ele ainda não.

Num primeiro momento, sinto uma enorme vontade de ser poderosa o bastante pra afastar todas as angústias existenciais que meus filhos possam atravessar... mas esse é o processo do crescimento. Para os mais sensíveis, cada passo vivido tem peso um pouquinho maior, tem cores carregadas. E preciso aceitar, me reprogramar, e ensinar isso para ele e para mim mesma. Para nós, seus pais.

Guardo este nosso encontro de corações com gratidão e afeto indescritíveis.

Meu tesouro particular é repleto de situações de conexão com algumas pessoas; entre elas, meus filhos.

Apesar do meio século de estrada neste mundo, ainda quero ouvir 'guizos'. E consigo!

A inocência não se esgota. Não fica pra sempre perdida.

A vida se encarregará de ensinar a ele que não precisa buscar o som dos guizos daquela forma que tanto o assustou... que isso simplesmente acontece!

Simplesmente acontece.