As coisas simples da vida, por Alberto Goldin

Leio a coluna e fico intrigada, porque os temas são sempre de natureza sexual, como se fosse a raiz de todas as infelicidades. Será?! Na vida, fiz muitas coisas que não foram motivadas pelo sexo, nem meu casamento. Casei-me aos 30 anos com Zé, um colega. Fazíamos bons programas, como cinemas, teatros... Nosso sexo às vezes me provocava orgasmos, outras não. Nunca foi um problema. Com o tempo, as relações foram se espaçando e sua ausência não gerou ciúmes, dúvidas, nem desvalorização. Na verdade, nunca pensei sobre isso. Agora, idosa e viúva, penso com saudade e carinho no meu marido, saudade do que fazíamos, e onde o sexo era insignificante. Pouco sexo nunca me impediu de trabalhar, curtir a vida, criar os filhos e ter amizades. Entendo que é importante para dar continuidade à espécie, e é muito gostoso. Mas há outras coisas que também dão prazer, como passear, comprar vestidos, bater papo, ler um livro.
Dora, Rio de Janeiro, RJ

Não é uma carta comum. É um respeitoso con­vite à reflexão, uma crítica velada, simpática e pertinente. A vida de Dora foi plena e feliz, mes­mo que a sexualidade com Zé, seu marido já fa­lecido, não tenha tido um lugar tão especial e privilegiado como sugerem minhas colunas. É possível? Felizes “para sempre”, família bem constituída, sem acrobacias sexuais, ciúmes, traições, desconfianças, amantes, taras ou com­pulsões. Admito que foi uma vida possível e de­sejável, porém, infelizmente, pouco frequente. Tiveram um encontro carinhoso, sem ameaças de incêndio, sem noites tórridas de motel, nem confissões de corpos suados. Dias calmos, saí­das com amigos, sexo tranquilo, abraços notur­nos, apertados e demorados.
  — Isso é normal? pergunta Dora.
  — Claro que sim! respondo.
  Porém, observo, surpreso, que ela ainda não des­cobriu o motivo secreto e milagroso do seu suces­so. Foi raro e feliz exemplo de simetria amorosa. Uma Dora mais exigente, ou um Zé mais entusiasta ou ciumento, ela frígida, ele impotente ou ejacu­lador precoce, ou com fantasias estranhas, dariam outra carta e, com certeza, outra resposta. O sexo humano é fabricado no começo da vida e suas pre­ferências são gravadas na pedra do inconsciente, como as impressões digitais nos dedos das mãos. Por isso, algumas mulheres são frígidas, outras ero­tizadas. E há homens que só pensam em sexo, en­quanto outros ignoram sua existência. Reunimos no mesmo baralho cartas com todas as diversida­des, embaralhamos bem e separamos as cartas em duplas aleatórias. Uma rainha e um ás, um quatro de copas e um valete, enfim, combinações infinitas. É evidente que Dora foi premiada com um compa­nheiro que sonhou com alguém como ela. Ela, por sua vez, aceitou, satisfeita, acompanhá-lo no mes­mo ritmo e sequência. Outra mulher, ou outro ho­mem, montariam o clássico quadrilátero de ten­sões, acordos, paixões, traições e perdões. O su­cesso ou fracasso do casamento é efeito colateral da diversidade humana, dramaticamente diferen­te, apesar de incluir raras simetrias, como a de Dora e Zé. É verdade que se todos fossem assim, não haveria cinema, teatro, romances, dramas ou bri­gas domésticas. Nem 15 anos da minha coluna nes­te jornal. Com um detalhe: no fim da vida, muitos que viveram angústias clandestinas, segredos e paixões se questionam se foram felizes por terem renunciado a opções mais calmas. E os que opta­ram por vidas convencionais se perguntam se foi certo serem tão lineares e previsíveis.
  Sem culpar, nem inocentar, cada um faz o que pode, não necessariamente o que quer, e tenta obter o máximo de satisfação com sua escolha. Exigidos por desejos sexuais egoístas, necessi­dades sociais altruístas, ambições e carências de amor, prestígio e dinheiro, os seres humanos, inclusive Dora e Zé, fizeram o possível para ter uma vida com mais acertos do que erros. A cada dia mais conscientes de que existe uma limitada, porém, importante capacidade de manobra: um volante e dois pedais, um de acelerador e outro de freio, que nem sempre funcionam correta­mente. Dora acertou, por isso, é um verdadeiro exemplo a ser seguido por todos aqueles felizar­dos que se sintam em condições de imitá-la.

Alberto Goldin é psicanalista.
A coluna Consultório sai na Revista O Globo — esta é do dia 13 de maio de 2012.
 
Alberto Goldin
Enviado por Germino da Terra em 17/05/2012
Código do texto: T3672236
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