Literatura  Morna





 
                        Todos que escrevem, em um dado momento, se preocupam em descobrir suas razões para escrever. Já escrevi sobre isso pelo menos umas duas vezes.
                        Há quem diga que escrevemos para por pra fora nossos fantasmas. Alguns imaginam ser uma terapia o ato de escrever. Outros, escrevem  como divertimento. Enfim, as razões são múltiplas, dependendo da pessoa que escreve.
                        Ouço falar, já agora entre os escritores profissionais, que a literatura anda morna e que os autores não se aventuram de corpo e alma em seus escritos. Têm a alma gelada. José Castelo, crítico literário, nota que alguns são tão técnicos, que parecem que estão jogando na Bolsa de Valores. Enquanto outros escrevem para a crítica, parecendo que elaboram uma tese erudita.
                        Este parecer de um intelectual do porte de José Castelo me fez voltar a meditar sobre o tema escrever, que me parece muito importante. É por isso que retorno ao assunto. Quando ele fala em alma gelada, me veio logo à mente o oposto, a alma quente.
                        Assim, não posso deixar de me recordar do velho Nelson Rodrigues, que não teve o reconhecimento que ele  merecia. Ele, justo ele, que não tinha medo das palavras e nos mostrava cruamente a vida como ela é. Suas “tiradas”  estão  eternizadas na boca do povo, sendo a mais conhecida  o famoso “óbvio ululante”.
                        É aí  que digo, para quem eventualmente esteja me lendo,  o seguinte: o Nelson,  falando a respeito de certos intelectuais,  dizia  que eles não sabiam “bater um escanteio”. E que  esse era o problema da literatura nacional. É preciso ser gênio para enxergar mais longe. Com certeza, ele estava dizendo a mesma coisa que o crítico José Castelo, usando uma metáfora popular.
                        Confesso que não consegui  perceber toda a extensão da metáfora do Nelson, porque, para mim, como um “perna de pau” que sempre fui nas “peladas” da minha adolescência, sempre achei difícil “bater um escanteio”. Por incrível que pareça, tremia ao bater um simples lateral, pois meu pé sempre saia do chão na hora de lançar a bola com a mão para um companheiro desmarcado.
                        Bem, mas como meus  amigos devem estar percebendo,  isso é um papo mais para romancistas, conversa de profissionais das letras.
                        Apenas aproveitei essa “deixa”, para poder firmar ou não minha convicção a respeito do que quero com meus “rabiscos”.
                        Já que todo mundo usa imagens para explicar melhor seus intentos, eu diria, com toda sinceridade, que estou vendo o mundo das letras como um grande parque de diversões, diferente  do que via o grande escritor Borges: não era só o mundo das letras, mas o mundo todo que ele via como uma grande biblioteca.  Na verdade, amigos, agora já não tenho tanta convicção se o velho Jorge Luis Borges via isso mesmo. Estou confiando na minha traiçoeira memória.  Mas com certeza, posso afirmar que ele sempre imaginou o paraíso como uma espécie de livraria.              
                         Pelo que consegui entender, a respeito do  verdadeiro escritor profissional, aquele que escreve ficção, esses se  aventuraram, apesar do medo.  E, possivelmente,   experimentando os brinquedos mais perigosos, desprezando os seus “grilos falantes”, enfrentando com coragem suas transgressões,  não precisam mentir como o Pinóquio da história infantil.  Fazem da ficção as suas verdades. Aliás, não resisto, deixa eu esquentar um pouquinho esta crônica e falar sobre esta questão do medo de escrever. Essa me foi contada pelo próprio José Castelo (através do jornal, naturalmente). Disse ele, quando estava na juventude, que fez um conto e enviou pelo correio para a grande escritora Clarice Lispector. Suando frio durante um mês, finalmente, recebeu uma ligação telefônica da Lispector. Disse ela: " Aqui é Clarice Lispectorrrr (falava como francesa), olha, Castelo, li seu conto e você é um escritor muito medrrrrooso, até logo!" A escritora simplesmente desligou o telefone sem dar chance ao Castelo de responder qualquer coisa.
                         Essa coragem o Nelson Rodrigues tinha demais e ele falava abertamente sobre os problemas da vida sem eufemismos, ali na lata. Outro dia o Jabor contou uma dele. Estava o Nelson num hospital público e notou um vozeirio na entrada.  Tinha sido atropelado um menino e estava lá dentro sendo cuidado. Nesta hora, aparecem os pais e outros familiares e vão para uma sala à espera do médico. O Nelson ficou vendo a cena, através de uma grande parede de vidro, onde não se ouvia nenhum som. De repente, o médico aparece e diz alguma coisa para os familiares. Pela leitura labial, o Nelson percebeu que o médico dissera que o menino tinha morrido. Os familiares começaram a gesticular, pular, sem parar, numa cena muda para o nosso escritor. Conclusão do Nelson, com aquela inteligência dele e coragem para falar rudemente: " quando sentimos uma grande dor, nós dançamos mambo".  

                                  
                        De minha parte, eu que ainda não aprendi a bater um lateral  corretamente, passeio  por esse parque de diversões encantado, antevendo o seu lado luminoso, sabendo que  está lá  também o lado mais sombrio da vida.
                        Por enquanto,  como aluno repetente , e medroso, contento-me, no máximo, em andar na  roda-gigante, mas com a Fada Azul ao meu lado.



                         Nota:  Esta crônica é uma republicação ( junho de 2011) mas acrescida dos comentários referentes à Clarice Lispector e Nelson Rodrigues. Gdantas