Tornar-se pessoa

E lá pelos 14 anos eu decidi: estava disposta a participar do mundo. Eu queria aprender a conversar, tomar decisões, deixar de ser sombra dos mais velhos, aprender a me defender, andar com decisão pela minha cidade prá lá de quatrocentona. Eu sonhava em tomar o ônibus sozinha, ir o centro, conhecer os bairros operários nos seus detalhes, observando as pessoas, as construções, as situações diversas. Os encantos de São Paulo me convidavam a viver intensamente, a compreender e contribuir com a vida de alguma forma. E mais: a exuberância das luzes da cidade se exibiam todas as noite sem nenhuma economia e me provocam um encantamento juvenil de mais profunda doçura e vontade de me sentir pessoa.

Eu fui devagar, tateando o direito da busca. Até porque não era de agrado do meu pai eu ir me tornando independente. Comecei a ir sozinha ao supermercado – o Peg Pag – bem no Largo do Cambuci. De repente, faltava uma lata de óleo ou um quilo de açúcar União e eu ia buscar o produto com uma rapidez espantosa, com largas passadas, desenhando aquela vontade imensa de andar sozinha e fazer os meus próprios caminhos. Aquele ensaio foi interessante e único. E eu ia ao Peg Pag quantas vezes fossem necessárias.

Com o tempo eu ia esperando que aparecesse alguma conta para que eu então eu pudesse pedir : “Pai, posso ir ao banco pagar a conta?” À medida que ele ia deixando mais importante e responsável eu me sentia.

1972: chegou o telefone. Foi para os meus pais uma vitória extraordinária. Para os filhos, uma novidade sem igual, um encontro com a civilização, um passo para se sentir em igualdade com os que tinham esse mecanismo de comunicação à distância. Muitas vezes ao dia eu tirava o fone do gancho só para ouvir o tuuuuuuuuuuuuu e olhava para o aparelho encantada e com um sorriso terno.

Orgulhosa, todos os meses, eu, inquieta, perguntava: ”pai, posso ir ao banco pagar a conta do telefone?” Resumo da ópera: efetuei o pagamento durante os 24 meses, o tempo do financiamento que o seu Nelson tinha feito.

A motivação era tanta que eu chegava do meu Colégio Marista, o Nossa Senhora da Glória, almoçava rapidamente, saía da mesa e já ia direto ao banco Itaú, como se fosse uma responsabilidade de adulto que, em breve, teria que se deslocar para o trabalho.

Conhecer o bairro do Ipiranga, observar o mercado, os transeuntes, as donas de casa sem inspiração e nem sonhos, apenas conformadas com a existência sem flor, os operários na sua luta e com as suas marmitas, sentados na calçada e aquela comida fria de ontem.

A Lapa com as suas construções cheirando a trabalho operário e a nostalgia da Itália, trazida pelos imigrantes do século XIX.

Tomar o ônibus, descer na praça da Sé, olhar docemente para a escadaria da catedral, caminhar olhando para as pessoas atarefadas e caladas. Outras, ansiosas... tudo era vida e luz.

Foi mágico encontrar, casualmente, numa quarta-feira, uma loja vendendo sabonete Vale Quanto Pesa na rua Quintino Bocaiúva, numa cesta exposta perto da porta.

A Livraria do Povo, silenciosa, exibia os seus títulos de orientação marxista. Lá comprei o meu primeiro livro de Alexander Soljhenitsin, um crítico contundente do governo soviético, que me abriu os olhos para as atrocidades em nome do poder. Entendi que ditadura tanto de direita quanto de esquerda são fadadas ao fracasso por negarem a existência, os sentimentos e os sonhos dos seus cidadãos.

Passeando e procurando trabalho pelo centro, observando amorosamente o mercado da Cantareira e sua história, caminhando pela Liberdade, mais tarde pelo bairro italiano do Bixiga, pelo meu Cambuci, vivendo intensamente a dinâmica de uma feira livre, passei a entender um pouco da vida, das relações humanas, do cansaço físico e do esgotamento da essência para se garantir a continuidade da existência. Nas missas daquele tempo eu observava as pessoas repetidamente pronunciando rezas sem envolvimento emocional, sem nenhum comprometimento com mudança de comportamento ou auto-análise. A valorização do pecado me atordoava e eu entendia que as pessoas deveriam ter sincero compromisso com a vida e com a justiça.

Caminhando pelas ruas de São Paulo comecei a compreender as coisas do mundo

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/05/2012
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