O ÚLTIMO TIRO FOI PRA MIM

Não vim discutir assuntos sociais. Não que esteja despreocupada, mas não é o caso no momento e não estou em condições de expressar opiniões libertárias e, ou jornalísticas agora.

Como disse um amigo poeta:"jornalistas são cordialmente detestados".

Vim contar apenas uma história. Um episódio recente que aconteceu comigo e que achei inusitado, anormal e que me tirou um sorriso pelo tamanho absurdo do fato. Sim! Tive que rir... E ri muito.

Não posso mudar a realidade nem quero ser mártir. Tal qual Raul Seixas: "Mamãe, não quero ser herói..."!

Acordo muito cedo. Levanto ao alvorecer. Fico na janela da cozinha vendo o sol nascer enquanto saboreio um cafezinho e fumo o primeiro maldito cigarro do dia. E todos os dias o ritual se repete. O meu e o do barulho que ouço. Vivi 13 anos em um violento garimpo de esmeraldas em Goiás. Sei bem diferenciar barulho de fogos do barulho de tiros. E o que ouço ao alvorecer são tiros de uma arma calibre 38. De tanto ouvir, parei para pensar de onde viriam. Moro no subúrbio do Rio de Janeiro. Não citarei o bairro, pois como já disse, não nasci para heroína e estou correndo à léguas de conflitos e confusões, mesmo tendo o dom de atrair sem querer desde que me entendo por gente! Parei para me perguntar de onde viriam os tiros. Não tive dúvidas de que não eram comemorações de festas que estavam terminando ou coisa assim. Tive logo a certeza de que eram algum tipo de "sinal" da milícia. Algo como "troca de turno". Percebi que vez ou outra se alternavam. O espaço entre um e outro era maior ou menor. Fiquei em minha assumida loucura, tentando decifrar "o código". Tive algum sucesso confirmado ontem pelo autor dos disparos. Exato. Acabei encontrando sem querer o autor dos tiros de meu alvorecer.

Já havia comentado com minha filha que os tiros que eu ouvia ao nascer do sol eram disparados pela milícia local. Ela, já acostumada com meus devaneios, só riu e disse com deboche que cá estava eu de novo com minha mania de achar que sabia tudo. Não sei tudo, repliquei, mas sei o suficiente para saber que estou certa desta vez. Rimos juntas.

Ao anoitecer, ela foi se distrair em um pagodinho na casa de amiga no bairro e conhecendo "todo mundo", se aproximou de um convidado da festa e disparou:

- Tio, pode confirmar ou negar uma teoria da minha mãe?

Ela já sabia que ele era miliciano e resolveu tirar minha história a limpo.

Ele, educadamente, perguntou:

- Teoria? Que teoria?

Ela explicou:

- Minha mãe acorda muito cedo e escuta o que ela acha que são tiros da milícia. São mesmo? E contou os detalhes que eu já havia dito para ela.

Ele, segundo minha filha, soltou uma gargalhada e perguntou:

- Sabe quantos tiros ela escuta?

- Ela diz que são cinco.

- Pois diga para sua mãe que pela esperteza dela, ao amanhecer serão seis. Eu que dou os tiros e são mesmo para troca de turno. As mudanças que ela escuta são porque alguém saiu da prisão, ou algum trecho está "em guerra", coisas assim. Coisas nossas.

Ao amanhecer serão seis tiros. O sexto será para ela.

E como miliciano nunca falta com a palavra o sexto tiro aconteceu. Ouvi e foi para mim.

Eu? Só peço a Deus que me proteja de mim mesma!

by MarCela Torres

Publicado no Recanto das Letras em 28/05/12

Zona Oeste, Rio de Janeiro, BraZil.

MarCela Torres
Enviado por MarCela Torres em 28/05/2012
Código do texto: T3693265
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