Memórias de um garoto interiorano

Memórias de um garoto interiorano

Lembro-me como se fosse hoje, eu cursava a 4ª serie do ensino primário em uma escolinha do interior de Ceará. Por causa da extrema pobreza um dos maiores, ou se não o maior motivo para ir à escola era a merenda, que nos era servida no recreio e que por sinal, após a primeira remessa vinha um delicioso repeteco, que era disputado a tapas pela molecada. E aconteceu que num belo dia me preparei para ir à escola, como sempre, vesti o meu já bastante velho e usado calção. Na verdade só possuía duas vestimentas, uma para vestir em casa e outra na escola. Cuecas! Nem pensar, naquela época criança não usava cuecas. Ao chegar à escola procurei a minha sala e me sentei no lugar de costume e alí permaneci por alguns momentos. Mas como sabemos criança não fica quieta, e numa dessas mexidas o inesperado aconteceu: Um prego que despontara da cadeira rasgou o meu velho e puído calção, me deixando parcialmente com as partes íntimas de fora. Nessa hora me passou um filme pela cabeça, me lembrava da volta pra casa, e principalmente da impossibilidade de participar do banquete de 15 minutos que pra mim se passava num piscar de olhos. A hora do recreio se aproximava e os meus colegas já estavam se preparando para correr, é sim, correr. Quem chegasse primeiro teria maiores chances de pegar o repeteco. Nisso, ao passar por mim, os colegas perguntavam rapidamente:

-Não vai merendar hoje Carlos?

E eu com as tripas roncando e o coração partido, respondia:

-Não! Estou sem fome.

Foi então que a sirene tocou e o que se viu foi uma explosão dentro da pequena escola. Todos corriam em direção à velha cantina que ficava no final do corredor ao lado dos banheiros. E eu totalmente mergulhado numa tristeza imensa. Na verdade eram duas tristezas: Uma de cunho famérico por que sabia que em casa não tinha o que comer. A outra era de cunho vergonhoso porque não tinha a ideia de como chegar em casa estando naquela situação. Finalmente a sirene toca e todos os alunos e professores deixam a escola. Naquele momento a escola se transformou em um mosteiro. Era um silêncio abissal que às vezes era quebrado com o barulho do vento nas árvores ou então com o cantarolar das auxiliares de serviços gerais que preparavam a escola para o turno da noite. Então feito um ratinho que fugira do gato e estava à espera do momento certo de sair fui me escorregando pelas paredes da escola. O que eu não contava era com a audácia de um colega, que sem deixar perceber me observava desde o inicio do meu calvário. Foi então que ele se escondeu atrás do portão e ao passar desconfiado e com o meu material cobrindo as partes intimas, o indesejado e cruel colega apareceu, e nesse momento mesmo estando fraco por causa da fome consegui empreender uma fuga alucinante, digna de um atleta Queniano. Só que nessa arrancada alucinante deixei cair o material que estava servindo de roupa e saí correndo pelas ruas da minha cidadela naquele estado. Ao chegar em casa nú, cansado e com fome fui ainda motivo de chacota, orquestrada pelos meus cinco irmãos que brincavam em frente a nossa casa. Não tive outra opção se não extravasar em choro ao qual fui prontamente acalentado pela minha mãe. E no outro dia, parte do drama se repetiu, só que dessa vez com um final feliz.

Carlos Junqueiro (LETRAS-PORTUGUÊS-UFC)

Carlos Junqueiro
Enviado por Carlos Junqueiro em 07/06/2012
Reeditado em 12/06/2012
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