A lógica indiscutível do Zeca.
 
Hoje me lembrei do que aconteceu a muitos anos atrás,quando meu avô ainda era vivo e eu frequentava sempre a fazenda.Minha prima  e eu saíamos a cavalo pela manhã e íamos até a casa do Zeca e da Maria Gorda.Chegávamos lá na hora do almoço.
Eles moravam no final da fazenda,na divisa,seu trabalho era impedir a invasão da terra pelos desocupados que sempre rondavam por lá.
Ele era um homem baixinho, banguela,loiro de olhos azuis,magro e miudinho,gostava de conversar, impunha muito respeito entre os peões.
A mulher era morena clara, gorda e alta,cabelos sempre presos num coque.Ela fumava cigarro de palha  e mascava fumo, tinha os dentes saudáveis, ela dizia que limpava os dentes com fumo, era calada,apenas ria por qualquer motivo...Não tiveram filhos.
Trabalhavam a muitos anos para meu avô.
Eu gostava muito de conversar com ele,tinha uma saberia que só os iletrados tem.Certo dia notei que ele estava “rodeando” o assunto...Falava sobre muitas coisas,mas eu sentia que havia algo mais.Sentamos na soleira da porta da cozinha e começamos a conversar enquanto minha prima e a Maria Gorda iam colher  abobrinhas, couve e cambuquira para comermos com polenta .
Foi minha chance, abri o jogo.
-Fala Zeca o que você quer saber,você quer me fazer uma pergunta né?
Ele me olhou firme nos olhos e disse:
-É verdadi.Ói fia vô falá procê pruque sei qui o cê num vai falá pra seu ninguém.Quero sabe uma coisa,ocê qui é da cidadi devi di sabê.
Fai tempu qui quiria falá,mai ficu cum vergonha.A Maria num quiria que eu falava,mai vô falá.
-Fala Zeca o que você quer saber.
-Óia.Quano ô era pititinho fui cum minha finada  santa mãe, qui Deus a tenha, na cidadi ,ela mi puxou prum lugá muitu grandi i cheim di genti.Tudu eis cantava artu i tinha um qui tocava um num seiquê qui era munto bunitu, uma musca linda pur dimais,tudu eis cantava artu,cada um quiria cantá mai artu qui u otru.Minha mãe, qui Deus a tenha,sentava, ficava di pé,ajueiava, i cantava,falava uas coisa qui ô num intendí,só intendí amém pru caus qui ela mi insino  rezá tudas noite u Pai nossu qui nu finar falava amém.Quano acabo a função ela mi dissi qui aquilu era missa da ingreja,lá era a casa di Deus,nossu pai, i era bão i lá nus dumingu,mai ô nunca  qui num  vortei mai.Trudia fui na farmácia buscá remediu pra curá dô di denti i passei na frenti das ingreja,tinha uas cincu, cada quar cum seu nomi deferente iscrivinhado no oitão,fiquei paradu iscuitanu um pocu in cada ua dela ,ocê qui é da cidadi,moça istudada devi di sabê pramordi di quê eis grita tantu i fica tudu juntim,u qui um faiz tudos eis faiz.
-Ô Zeca por que você já não perguntou  para o vovô a mais tempo?
-Ahh,não ô ficu cum vergonha i sem jeitu di falá sas cois prele ,mai co ocê é mai fácir.
-Eles gritam e cantam para dizerem a Deus que o amam,para mostrar a ele seu amor, agradecer as graças que são os favores que receberam e fazerem outros pedidos, as vezes pedem saúde,outras pedem para arrumarem emprego,agradecem que ficaram curados e tudo de bom que receberam de Deus.
-Mai,num intendu pru que tem qui si juntá tudus nua casa tão grandi i cantá tão arto.Num foi Deus nosso Pai qui fez tudu nessi mundão di Deus,inté nóis? Eli sabi quem é bão i quem é ruim,quem faiz mardade pros outro iguar qui eli, i pros animar,quem corta um pé di fruta i arvi sem precissaõ ninhuma,eli sabi tudu di nóis,pru que eli é nossu pai.Num pricissa i lá, é só fazê as cois certa,te coração bão,judá os otro,sê direitu nus negóciu.Só issu,num pricissa gritá, eli sabi quem qui a genti é,pra agradece eli,quarqué lugá servi,mai tenhu cumigu qui eis pricisa ficá juntu prá mostrá pro outro qui sabe cantá e falá aquelas coisa qui  sabi lê nu paper.Num sei, sô tonto mermo, si eis faiz issu devi di tê argum mutivu, mai ô quiria sabê pru quê.
Fiquei calada, olhando para ele e “digerindo”o que ele disse, sua lógica era indiscutível,sem saber ao certo o que responder.
-Sabe Zeca,eles se reúnem por que juntos eles se sentem mais fortes para lutar contra o pecado e escutar o que Deus deixou de recado.
-Mai que bestage! Quem foi u qui escreveu u qui Deus diss?
-Foram homens escolhidos por Deus para escrever.
-Mai cumu qui eis sabi qui quem escrivinho foi o iscoidu e num armento o qui Deus falô prele?
-Por que eram homens muito bons,alguns faziam milagres.
-A bão,intão eis era benzedô né?Ô creditu ni benzedô,mai só cunheço quem num sabe nim iscrevê.Ômemo num si escrevê mai sei benzê berni di animar cum reza e cas mão,eis cai tudim na horinha.Mai num credito ni  tudu qui tá iscrito,memo num sabeno lê.Mai sô  tementi a Deus, sô honestu i um omi bão.
-Zeca isso é o que importa.Deus deve gostar muito de você.
-Memo num ino visitá a casa deli i falá aquelas coisa,pru quê Ô num vô lá mais nunca Eli num fica bravu cum nóis?
-Mesmo assim.
-Intão tá bão,si ocê tá falanu,é pru qui devi di sê verdadi.
Oiá lá e vem as duas marmota cas verdura,i limão pra nois fazê limonada.Vamo entrá pra dentro?
-Vamos.
Nunca mais comi nada tão saboroso e nem tive uma conversa tão prazerosa com mais ninguém,como é bom conversar com pessoa “desarmada” escutando o som maravilhoso da roda d’água!
Hoje fiquei pensando na lógica do Zé.Como seria bom existir mais homens como ele e a Maria Gorda.Inocentes e puros,que seguem as leis de Deus sem questionar,apenas não entendem o comportamento dos demais que discutem religião,mas isso não muda  em nada seu comportamento e fé...  
Curiosidade esclarecida,é imediatamente esquecida!Que coisa boa ser assim!
 
 
M.H.P.M.