Caso da coruja.

Eu não sei porque cargas d’água, mas nunca fui chegada a corujas. Não acho beleza, não sinto poesia naquele olhar penetrante e inquisidor. A sensação que tenho é que elas gostam de censurar, que têm um “não” antipático e definitivo entalado na garganta para qualquer atividade humana. Principalmente para atividades criativas. Definitivamente, não gosto delas.

Mas eu não sabia que um dia elas chegariam perto, bem perto de mim. Será que queriam dizer que são belas, simpáticas, quem sabe risonhas? Não tenho a mínima ideia.

Era numa daquelas tardes em que o trabalho e a vida acadêmica nos pesava nada delicadamente nas costas. Quando estudante universitária eu penei muito. Trabalhava responsavelmente para ajudar a manter a casa, com preocupações de adulto e, ainda mais, com a eterna dificuldade de aprendizagem. Mas na vida universitária, ninguém ouve, ou mesmo quer saber das tormentas dos reles estudantes. Textos gigantescos para serem lidos, traduzidos, problematizados (eles adoram essa palavra) , desconstruídos (essa palavra então, nossa!, provoca frisson) de todas as disciplinas. Fora os seminários, os estágios nas escolas públicas, as noites mal-dormidas. Numa madrugada, a minha irmã, com quem eu compartilhava o quarto no nosso apartamento na Aclimação, dizia que eu havia me sentado na cama e pedido para o meu pai segurar a “crista da onda”. Quem se lembra da Jovem Guarda sabe que se falava desse jeito. Resumindo, eu delirava e tinha que estar inteira no dia seguinte, inapelavelmente.

... Mas numa daquelas tardes, já meio frias, a minha amiga Selma, colega de infortúnio, e eu resolvemos esticar o esqueleto no gramado da cidade universitária depois do almoço até que a próxima aula começasse. Em minutos eu já estava quase babando, deitada no chão, com os livros, cadernos e bolsa do lado, já quase tendo novos pesadelos com Marx e Engels. Foi quando ouvi a voz da minha amiga com muita apreensão:

- “Veruska, levanta rápido, pega o material, não olha pros lados e vamos sair correndo”.

O meu coração foi parar na boca. Num segundo eu imaginava os milicos chegando prá prender a gente, porque tínhamos feito greve e eu já trabalhava em jornal de oposição à ditadura. Imaginei uma ameaça de seqüestro e onde arrumar dinheiro para o resgate? Ou será que os milicos iam nos levar, não deixar vestígio, nos matar e nos jogar no cemitério de Perus? Afinal, nos anos 70 isso era comum. Mas também podia ser algum outro meliante se aproximando para nos surrupiar os poucos tostões que tínhamos na bolsa, levar os documentos ou sei lá o quê. O medo me invadiu a alma pela apreensão da voz da Selma... depois de uma boa corrida, ofegante e ainda meio afônica, eu perguntei:

- “Mas o que que era, Selma do céu?”

- “Aquelas três corujinhas brancas, que ficam lá no prédio das Letras, estavam chegando perto de nós”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 15/06/2012
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