Jesus, a camiseta e a polícia.

Insônia é coisa difícil de vivenciar. A situação começa a gerar uma certa ansiedade, mil pensamentos desconexos vêm à mente, a cama parece desconfortável, qualquer barulho irrita. Só quem sofre disso sabe dizer. No momento, sinto que dormir virou – digamos – perda de tempo. É tanta coisa boa prá fazer: atender no consultório e perceber o paciente saindo com uma nova disposição para a vida, um brilho no olhar, seja moderado ou radiante, não importa: é brilho e promessa de vida com satisfação e leveza. Tudo vale pela alegria por um trabalho bem realizado, fruto de um estudo prolongado e dificílimo.

Os livros bons – quanta leitura preciosa tenho feito! Não há razão para dormir. A literatura extraordinária de Dalai Lama tem me provocado um pensar profundo sobre a arte de ser feliz. E não só: a poesia da vida tem me encantado especialmente nas horas em que produzo peças cerâmicas. O torno é mágico. Levantar uma peça a partir de uma bola de argila pode parecer fácil... mas não é. Exige habilidade, atenção, persistência... mas quando o resultado sai, a alegria é indescritível e insubstituível.

Então, dormir virou uma pedra no caminho, uma etapa desagradável a ser realizada...

Os sábios chineses da antiguidade diziam que a insônia é consequência do desenraizamento da alma etérea. Quer dizer, a alma etérea, que se concentra no fígado, está sem residência. Logo, o meu fígado não está muito bem das pernas, não.

No meio da madrugada, veio a fome, inevitável e desagradável visita aos noctívagos.

Vou à cozinha, acendo as luzes, inclusive da área de serviço.

O susto me fez tremer... uma pessoa me olhando pelo vidro da janela, imóvel e com olhar penetrante, silencioso. Uma da madrugada! Meu Deus! Ladrão! Sorrateiramente entrando na minha casa! Com as pernas bambas, apaguei as luzes, com medo de levar algum tiro no meio da ideia, voltei ligeira ao meu quarto:

-“Nashinho, acorda. Eu estou muito assustada! Tem gente entrando em casa! Vamos chamar a polícia”.

-“Mas o que você viu?”

- “Uma pessoa parada, olhando pela janela da cozinha, quieta. Eu vi assim que acendi a luz”.

Ele foi se levantando prontamente e eu implorando para que tomasse cuidado. Eu estava decidida a chamar a polícia. Eu falaria baixo pelo telefone, passaria todos os dados, os detalhes da ameaça... e o meu marido: “não chama. Se o cara escapa, o que nós vamos dizer?”

O meu marido foi andando, sem barulho, cauteloso e decidido a enfrentar o bandido.

Não acendeu nenhuma lâmpada. Apenas olhou cauteloso. De repente, me fez sinal para eu clarear o ambiente.

- “Ô, preta, fique tranquila. É a camiseta pendurada do nosso filho, com a estampa do rosto de Jesus”...

Bem, a tremedeira demorou um pouco a passar. Fiquei pensando nas gargalhadas que o sr. beleguim daria ao se deparar com o suposto meliante. Uma viatura chegando, alguns guardas entrando pelos fundos do prédio, outros pela porta principal, alguns vizinhos acordando, apavorados. ..e eu tremendo, evitando falar alto... que vexame!

Antes de me deitar pela primeira vez eu havia tomado um copo de suco de maracujá. Depois dessa vergonha da madrugada de sexta-feira, peguei um pedaço de frango – comi gelado mesmo – e um copo de vinho tinto da colônia italiana de Nova Trento. Só de desaforo!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 16/06/2012
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