Os brinquedos de Martha

Lembro que, quando eu era criança, em casa não costumava ter muitos brinquedos, até porque meus pais não tinham condições econômicas suficientes para nos dar nada além do básico. Apesar de tudo, isso não significa que tenha tido uma infância diferente de outras, ou mesmo sem graça. Eu e meu irmão mais velho tínhamos muito amor e atenção dentro de casa, além de muita imaginação para inventar nossas próprias

histórias, diversões e brincadeiras. Os amigos da pequena vila onde morávamos já faziam toda a diferença. E isso nos bastava.

Algum tempo depois, já na adolescência, nas leituras de gibis que fazia, vez por outra, deparava-me com historinhas que, invariavelmente, traziam uma cena inesquecível. Crianças brincavam num quarto e, lá pras tantas, uma resolvia abrir um armário entupido de brinquedos. Não dava outra! A quantidade e a diversidade de artefatos e bugigangas

que invadiam aquele compartimento da casa era algo fora do comum. Um tsunami de tralhas por todos os lados, inundando todos os espaços disponíveis. Uma verdadeira avalanche, capaz de deixar qualquer leitor com uma pulga atrás da orelha. Caracas! Como é que isso tudo foi parar ali dentro daquele armário?!

Cena extraordinária, fantasiosa e, por isso mesmo, muito divertida. Coisas da imaginação de quem escreve, especialmente para o público infantil. E isso me divertia muito, como se fosse a primeira vez.

O tempo passou e, enfim, chegou a fase adulta. As leituras de gibis permaneceram como uma herança boa do passado. Por outro lado, fui agregando o gosto por outros gêneros literários. E, para mim, a afinidade por um determinado gênero é algo que se assemelha à escolha de um estilo musical. Existem aqueles com os quais simpatizo de

cara, enquanto outros, por mais que eu leia ou escute, não tem jeito que dê jeito.

Foi lendo muito Martha Medeiros que comecei a tomar gosto pela crônica. Mário Prata, Rubem Alves e Max Gehringer também tiveram papel decisivo nessa escolha. Um gênero simples, claro e objetivo, como deveria ser tudo na vida, e que se propõe a passar um recado. A princípio, os escritos de Martha iam caindo na minha caixa-postal,

enviados por amigos. Depois, fui pesquisando na internet outras pérolas dessa jornalista gaúcha. Aí inventei de comprar algumas de suas obras. Quando menos esperava, como um leitor que ouve o canto da sereia, fui atraído e me encantei por seu estilo. Naufraguei. Sem desmerecer os demais escritores e com a licença deles, devo confessar o que muitos já sabem: essa mulher joga o maior bolão!

Em uma das últimas viagens que fiz a trabalho, passando oito horas dentro de um ônibus e não conseguindo agarrar no sono, foi Martha quem me fez companhia praticamente durante todo o percurso, tanto de ida como de volta. Viajei com ela. Já prevendo que o desconforto de dormir em um banco de ônibus iria acontecer, agarrei-me ao “Feliz por Nada” como quem se agarra a um bote salva-vidas.

À medida que lia suas crônicas, fui me lembrando do armário de brinquedos e pensei nos brinquedos de Martha. Imagino que ela possua algo parecido, só que, ao invés de bonecas, casinhas, ursos de pelúcia, joguinhos “cuticuti” e outros objetos afins, essa divina escritora deva dispor, em algum lugar, de um armário entupido de palavras, terminologias, ideias e expressões que costuma usar em tudo que escreve. Sim, porque Martha, invariavelmente, utiliza um arsenal fabuloso e diversificado de sua brinquedoteca (ou “palavroteca”), quando se trata de destrinchar os temas mais comuns do dia-a-dia dos

simples mortais. Coisas sutis que acontecem com ela, comigo, com você, com seu gato, cachorro ou papagaio. Quem leu “Feliz por Nada” vai entender porque não digo que “acontece com todo mundo”.

Ela, quase sempre, começa de mansinho como quem não quer nada e, de repente, tal qual uma Daiane dos Santos, dá um salto triplo mortal carpado e já se transforma num Rambo com sua metralhadora de ideias geniais em punho, disparando para todos os lados. É uma ideia atrás da outra, todas juntas e misturadas. E todas se encaixam como peças de um Lego, causando um frisson arretado na cabeça do sujeito. Cessado todo esse burburinho de argumentos, que sempre me pareceram caseiros, normalmente, Martha puxa da manga uma carta para arrematar a parada. Dá um sopro no cano da pistola que havia escondido em sua indumentária gauchesca e coloca-a de volta na cartucheira com aquele olhar 43, como diria Paulo Ricardo, “aquele assim meio de lado, já saindo, indo embora”, como quem diz para o leitor: e aí? Chupa essa manga!

Mano Kleber
Enviado por Mano Kleber em 19/06/2012
Reeditado em 05/12/2012
Código do texto: T3732861
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