Ilustração Google / Vercial
 
 
"Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!..."

[Guerra Junqueiro, apud
Os simples]
 
      Em menino, e que agora me caia na lembrança, não perdi nada vezes nada. Nada mesmo que me tenha feito mossa na memória. Não lembro. A não ser o meu cão Ideal, quando este faleceu. Adulto, sim, mas não tocarei aqui nas pessoas que por acaso haja perdido. Ah, nem me peçam isto, de jeito nenhum!
 
      Seria ruim evocar os mortos queridos e, quem sabe, poderia eu ser tentado a bater na tecla de alguma ex-namoradinha, daquelas lá dos tempos em que Judas perdeu as botas. Dos meus mortos, em os relembrando, agora, podiam deitar-me aos olhos ribeirões de lágrimas. E não quero nem devo ficar emotivo nem lambuzar os olhos.
 
      Perdi alguns livros, em minhas andanças e mudanças, coisas preciosas das quais eu nunca me esqueço. Não que tivessem valor pecuniário: somente valor afetivo. Primeiro, desapareceu-me Os simples, livro de poemas de Abílio de Guerra Junqueiro, o lusitano. Daria um doce a alguém que me devolvesse aquele volume de capa dura, gravada a ouro, embutida num veludo azul, parece que edição de 1924. Raridade.
 
      Depois, também sem peso econômico, três tomos de que a repressão se apossou, ali pelos idos da ditadura. Coisas imperdíveis que perdi. Um deles, ainda sem os chatos enxertos do camarada Mao Tsé-Tung, autoria do francês Georges Politzer, chamado Origem e princípios de filosofia. Aí, lá nele, temos os alicerces primordiais do socialismo cientifico.
 
      Outro livro surrupiado pela repressão foi O homem medíocre, do ítalo-argentino José Ingenieros. Embora cheio de tiradas filosóficas e citações bonitas, inofensivo para o status quo. Mas foi levado mercê da ignorância do agente federal. O terceiro livro afanado pelo regime de exceção foi o Diário de Che Guevara, traduzido e publicado, no Brasil, àquela época, logo após a morte do herói internacionalista.
 
      Nunca tirei da cabeça a perda desses três. Consegui comprar o Politzer, com os enxertos maoistas, e também o Ingenieros, com tradução muito ruim, mas o que me faz falta é o de poemas, Os simples
 
      E, aqui, abro um parêntese, pois me vem à mente a figura chocha e miúda de Seu Caminha, aderente do escritor cearense Adolfo Caminha, autor do afamado romance A normalista.
 
      Aceitando convite da esposa dele, certa vez fui visitar e conhecer o Seu Caminha. Muito velho, sem nunca pôr o nariz fora do casarão arredio e sombreado por um arvoredo, conversa vai e conversa vem, ele desabotoou a declamar-me versos do Guerra Junqueiro. Suponho que eram lá de A velhice do Padre Eterno.
 
      Oh, mas para que fui exercitar uma aventura – ir à casa de Seu Caminha? Pois o homem tanto dizia os versos do lusitano como chorava que chorava. O psiquismo do cidadão ficara deteriorado. E nunca vi criatura tão sensível.
 
      Arre!... Ainda há um livro que perdi (hoje o tenho xerocado).  Gostaria de reaver o original: A crestomatia, de Radagásio Tabosa, 1954. Da Editora do Globo, Porto Alegre. É para contar de outra feita. E, para não ficar danado dos pés, nem penso em citar as quase noventa moedas de prata, prata 999, todas raras; só daquelas muito antigas e grandonas, com a efígie de D. Pedro II, e com barba e tudo. 
 
      Não queiram que fale delas, não. Senão vou ficar tiririca, p. da vida. Elas? Nem as perdi: fizeram foi me roubar, acompanhadas de um incontável número de outras moedas de níquel e outros metais, todas, como diz um numismata, moedas em “flor de cunho”. Ora, mas vão-se todos os anéis e fiquem os dedos. Só não queria era ter perdido o meu Os simples, de capa azul e dourado no título.


                                                                         Fort., 25/06/2012
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 25/06/2012
Reeditado em 25/06/2012
Código do texto: T3743503
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