Deus lhe pague

Hoje é segunda-feira, faltei em meu trabalho para procurar um mendigo, que encontrei casualmente na segunda-feira anterior. Imagino que se o mendigo soubesse a razão pela qual eu o procuro, não estaria se escondendo tão bem. É fato, tenho em minhas mãos dez mil reais, e pretendo entregar para ele cada centavo. Por que? Bom, é por que ontem, algo muito estranho aconteceu comigo:

Era domingo, e a simples perspectiva da programação de TV dominical já me entediava o bastante para deixar o aparelho desligado. Eu tomava café da manhã tranquilamente em minha casa, usava meu chinelo mais rasgado e confortável, como faço todos os domingos. Minha esposa havia acordado bem mais cedo para ir à missa, e após tantos anos de casados, ela já aceitou o fato de que eu não iria mesmo engolir toda aquela baboseira religiosa e me deixa dormir sem que eu precise discutir a respeito.

Tudo estava bem até que a campainha tocou. Arrastei-me para abrir a porta e fui surpreendido com um senhor de voz possante que ao invés de me dizer bom dia, disse:

---- Venho em nome do Deus Altíssimo, Pai todo poderoso criador de todas as coisas!

Nem pensei e fechei a porta com violência, tomando o cuidado de fazer um grande e intimidador estrondo que o desestimulasse a repetir a cena no próximo domingo. Segundos depois, a campainha tocou novamente. Só existe uma coisa que me deixa mais furioso do que uma pessoa religiosa que quer que os outros aceitem suas convicções: é uma pessoa religiosa que quer que EU aceite suas convicções e que não consegue entender o que a metáfora de uma porta fechando com violência em seu rosto quer dizer. Abri a porta novamente, me segurando para não dizer toda a lista de palavrões que aprendi desde minha infância.

---- O que foi? - Perguntei.

---- Desculpe meu caro senhor, deixemos minhas credenciais de lado, visto que o senhor não parece interessado nelas – O homem falava sem medo de que eu repetisse a cena da porta – venho aqui por um motivo que com certeza lhe interessará...

---- E qual seria? - Perguntei já com a certeza de que ele iria querer me vender alguma revista especializada em salvar a alma das pessoas do próprio Deus que ele professava, mas, me enganei.

---- Vim saldar uma dívida com você.

---- Que dívida? Não estou devendo nada para ninguém!

---- Não! Não me entenda mal. Meu Patrão assumiu uma dívida com você, e me enviou para que eu pudesse quitá-la.

---- Seu patrão?

---- Sim, meu patrão, Senhor e Criador de todas as coisas!

Eu já estava prestes a bater novamente a porta quando ele tirou um pequeno maço de dinheiro, e disse que era meu.

---- Não! - exclamei – Deve estar havendo algum engano, ninguém está me devendo este dinheiro, acredito que você errou de casa.

---- Não houve nenhum engano. - ele falava com muita certeza e autoridade – Na segunda-feira passada o senhor ofereceu espontaneamente dez reais para um homem, morador de rua. Não ofereceu?

---- Sim... Acho que sim... O mendigo me pediu, e achei que não me faria falta o dinheiro.

---- Acontece que este mendigo, como o senhor o chamou, é um dos poucos humanos que ainda não perdeu ou vendeu sua fé.

---- Como assim?

---- Ele ainda é puro. Tem fé em Deus acima de todas as coisas. Nunca vendeu sua esperança a nenhuma religião, bandeira ou pessoa. Para ele todas as promessas divinas de meu Patrão continuam válidas e operantes.

---- E dai? - Uma parte de mim queria bater a porta, outra parte estava curiosa demais para deixar eu fazer isto.

---- Quando ele lhe pediu dinheiro para você, recebeu imediatamente a partir da promessa divina em Lucas capítulo 11 versículo 9: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.

---- Certo, então foi Deus que manipulou minha mente pra eu dar meu dinheiro pra ele... Muito interessante... Mas se Deus o escuta tanto assim, por que ele ainda é um mendigo? Por que não está milionário?

---- Ele nunca pediu para não ser um mendigo. Aliás, o pedido mais egoísta que recebemos dele foi um prato de comida para outro morador de rua que desfalecia...

---- E isso é egoísta?

---- Sim! Se seu amigo morresse, ele ficaria triste por perder um amigo, e não feliz por devolver um amigo ao Pai, como deveria ser... Egoísta.

---- Tá bom, tá bom! - Eu já perdia minha paciência – E por que você quer me dar este dinheiro?

---- Lembra das palavras do mendigo após receber o dinheiro?

---- Ah! Não lembro, acho que ele disse “Deus lhe pague”, como diz pra todo mundo...

---- Não... As palavras exatas dele foram: “Deus lhe pague mil vezes mais”. Por isto estou aqui, para lhe entregar dez mil reais, que Deus ficou lhe devendo.

Eu não sabia se ria, se chorava, se batia a porta ou se simplesmente acreditava. Existe uma tendencia inerente ao ser humano que nos torna mais aptos a acreditar em algo que gostaríamos que fosse verdade, no momento, eu sentia um medo colossal de estar sendo exposto a uma mentira deliciosa e doce, que todo meu ser gostaria de poder crer.

---- E qual é o golpe? - Perguntei – O que eu tenho que fazer depois? Ir para igreja? Rezar? Distribuir sopa aos pobres?

---- Nenhum golpe! - Ele afirmou com muita convicção – O senhor deve aceitar o dinheiro, e me deixar ir embora, tenho muito o que fazer ainda hoje.

---- Mais dívidas a quitar?

---- Sim... De todo o tipo...

---- Ok... Então me dê o dinheiro.

Ele me entregou o dinheiro, agradeceu pelo fato de eu tê-lo aceitado, e foi embora, sem olhar para trás.

No momento, aquilo tudo foi um pouco demais para minha cabeça, mas, o domingo foi passando e a medida que a cena toda se repetia em minha mente, eu ficava cada vez mais convencido de que aquele mendigo possuía um cartão de crédito celestial ilimitado e sem taxas adicionais! Dez mil não mudariam minha vida, mas,. no fim do dia eu já tinha um plano para me tornar milionário: Bastava entregar de bom grado os dez mil para o mendigo e esperar ele me agradecer com a rotineira frase “Deus lhe pague mil vezes mais”. Dez milhões de reais, mudariam tudo!

Quase não consegui dormir. Por isso hoje, sai cedo de casa, desesperado em busca desse mendigo maravilhoso que tem suas palavras ouvidas pelo próprio Deus! Faltei em meu trabalho pela fé no Deus do mendigo que de um instante para o outro despertou dentro de mim. Procurei em cada beco, em cada esquina, e finalmente, beirando meio-dia, encontrei o mendigo santo, sentado tranquilo, encostado em uma mureta, observando a vida passar como quem está entretido com um filme espetacular em um cinema.

---- Bom dia! - eu falei com muita alegria e esperança milionária em meu coração.

---- Bom dia! - ele me respondeu.

---- Lhe trouxe um presente – eu disse meio afobado, e entreguei a ele um envelope com os dez mil que havia recebido no dia anterior.

O mendigo abriu o envelope, olhou para o dinheiro, olhou para mim, sorriu, e disse:

---- Puxa! Muito obrigado moço.

---- Muito obrigado? Só isso?

---- Nem sei o que vou fazer com todo esse dinheiro. Espero que Deus me diga quem precisa dele mais do que eu.

---- Mas... Mas...

Fui embora segurando minha fúria, antes que eu espancasse um autentico e legítimo filho de Deus. Tantas frases que ele podia ter dito para me agradecer, mil vezes mais, um milhão de vezes mais, mas não, ele tinha que me dizer apenas um “Muito Obrigado”. Droga! Droga! Droga!

Virei uma esquina e comecei a xingar com todo meu folego. A velha lista de palavrões que acumulei desde minha infância, que segurei em meu peito tantas vezes durante minha vida, foi finalmente declamada em alta voz, no meio da rua, para quem quisesse ouvi-la e ampliar sua própria lista. Quando de súbito, o homem que bateu em minha porta me toca o ombro.

---- Não conseguiu enganar o patrão? - Ele perguntou um pouco malicioso, como se soubesse de cada detalhe de meu plano desde o início.

---- Não... Nem sei como pude tentar... Enganar Deus não é algo que um homem consiga fazer...

---- Então... Desculpe se menti para você... Esse é o golpe. Esse era o golpe o tempo todo.

---- Como assim?

---- A fé que você usou para dar o dinheiro ao mendigo, é a mesma fé que faz o mendigo ser um homem tão especial. Você sempre a possuiu...

---- Como assim???

---- Você também é um filho Deus. Basta manter sua fé.

Ele simplesmente desapareceu na minha frente, como se fosse um fantasma daqueles filmes antigos sem nenhum tipo de efeito especial produzido por computador. Uma hora estava lá, depois não estava mais.

Hoje voltarei ao meu trabalho à tarde, aceitarei a represália do chefe e farei meu melhor. De hoje em diante amarei minha esposa e aceitarei suas crenças, talvez as vezes eu a acompanhe para a missa aos domingos. Viverei minha vida, e seja o que Deus quiser...

=NuNuNO==

(Que pediu mais dinheiro e recebeu mais trabalho)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 12/07/2012
Código do texto: T3773576
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