PINA E A PASSEATA DE REZADORES (EC)

Qual a desculpa para o atraso hoje? Ônibus, trem, fila, greve?

Nada disso, Gegê...

Pina, Gegê era até as nove horas... São quase onze... A Gegê perdeu a hora e a Dona Gertrudes está pensando seriamente em demitir uma certa Seraphina, Josephina (nomes da Pina), ou sei lá como é seu nome.

Nem eu lembro, dona Gertrudes!

Fica quieta... Não me irrite mais...

Desculpa aí, Gegê, mas qual era o compromisso da senhora que era tão importante?

Minha caminhada matinal dos sábados, ora... E de mais a mais não é da sua conta, sra. Josephina...

Posso explicar...

É pergunta ou afirmação?

Primeiro uma. Em caso de resposta afirmativa, vou para a segunda parte. Em caso de negativa...

Vai para a cozinha...

Gegê, posso explicar antes?

Não!

A senhora não vai agüentar a curiosidade, vai perguntar depois e eu posso ter me esquecido de detalhes.

Deixe passar minha raiva.

Raiva é pecado! E faz mal para o estômago, afeta o raciocínio, tira a razão da gente.

Onde você aprendeu essas coisas?

Ouvi do ônibus.

Tinha algum médico no ônibus?

Presta atenção, Gegê! Eu falei do ônibus e não no ônibus...

Como assim?

A senhora sabe... Eu venho lá da Zona Norte até aqui na Zona Sul... Saio às seis da manhã para chegar às nove... Fico meia hora no ponto...

Chega, que essa ladainha eu já conheço... E hoje é sábado...

Pois é... Pensei que, porque é hoje é sábado, iria ser mais fácil e saí às sete horas... Aí, chegando perto do Sambódromo comecei a escutar um som alto... Achei que era trio elétrico chegando da noitada... Até me animei... E tchucumdum, tchucumdum, tchucumdum, tchucumdum...

Para de enrolar, porque hoje é sábado, e sábado é dia de lavar quintal.

Então... Não era samba... Era música religiosa... Essa tal de..., de...,

Gospell...

Isso! Desse cantor aí...

Ai... ai... ai... ai...

Então... O trânsito parou e começaram a buzinar... De repente, a música parou e um homem começou a falar sobre a raiva, a impaciência... A senhora devia ter ouvido...

Eu queria era ouvir o som do silêncio das árvores... E se você não tivesse se atrasado, eu não estaria com raiva, nem impaciente.

A senhora perdoa? O homem disse que o perdão é importante...

Vou é descontar o seu atraso...

Não faz isso, não, dona Gertrudes... Se a senhora descontar, não vai sobrar para eu pagar o dígimo...

Dízimo, Pina! Dízimo...

Eita! Quando eu falo rezisto é registo... Se eu falo dígimo, é dízimo... Vá entender!

Você não pagou dízimo, pagou?

Ainda não! Mas anotei o número da conta... Ele disse que é para um novo templo para Jesus...

Ai, Pina! Seu dinheirinho é ganho com tanto suor...

Isso é verdade! Lembra o aumento que a senhora prometeu?

Não lembro, não... Ainda mais hoje...

Está bem.... Outro dia a gente conversa... O homem falou em penitência e paciência... Gegê, tira uma dúvida?

O que é, Pina?

O dígimo... Fiquei pensando... Se ele disse que Jesus mora no coração da gente, para que precisa de um templo para falar com ele?

Deve ser para lavar...

Já sei! Lavar os pecados da alma... Ele falou nisso...

Deixe para lá, Pina! Você vai demorar para entender e tem muita coisa para lavar aqui em casa.

Estou perdoada?

Desta vez passa! Está falando a verdade... Eu ouvi no rádio o tumulto que está no Centro da cidade, por causa dessa passeata a caminho de Cristo.

E ainda bem que ele mora perto do Centro, né?... Já pensou se ele morasse longe que nem eu e o pessoal tivesse que tomar duas conduções toda vez que fosse visitá-lo...

Eles têm!... Eles têm!... Agora, vá trabalhar, que eu vou fazer a minha caminhada para ver se me acalmo.

Posso rezar um pouco antes de começar?

Hummmmpffff! Melhor não! Já ouviu aquele ditado: “Quanto mais se reza, mais o Diabo aparece?” O seu já passou perto hoje...

Está bem! Se a senhora vir o Sr. Takeo, mande lembranças...

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N.A. – Assim como o autor, Pina também se atrasou, vítima de mais um dia de inferno no trânsito de São Paulo, por conta de mais uma passeata de uma igreja evangélica, rumo a Cristo. Coube a Dona Gertrudes (Gegê), e não ao pastor, perdoar Pina pelo atraso. Pina, felizmente, convenceu-se a não pagar o “dígimo”.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Quanto Mais Eu Rezo...

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 16/07/2012
Reeditado em 30/09/2012
Código do texto: T3780335
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