Minha história de fantasma

Jurandir é um fantasma que, para os poucos vivos que o veem, não aparenta ter mais que trinta anos. Na verdade, quando faleceu, tinha acabado de completar trinta e dois. Era contador. Trabalhava de sete da manhã às sete da noite, e em casa ainda fazia serão, concluindo orçamentos, planilhas e relatórios desanimadores, só para adiantar o serviço. Morava sozinho no apartamento que hoje assombra, bem em frente ao Parque Municipal. De lá só sai para ir à feira hippie aos domingos ver o artesanato, os quadros expostos nas calçadas, o formigueiro humano se acotovelando, comendo, rindo. Algumas pessoas o veem durante o passeio, mas não sabem que ele é um fantasma. É que, quando era vivo, não conhecia muita gente, saía pouco, não era de muita prosa. Amigo, só tinha um, o Leopoldo, que morreu com ele no acidente e depois nunca mais deu notícia.

Jurandir é fantasma solitário. Fica o dia inteiro desenhando. Em vida, seu sonho era ser pintor, mas nunca teve tempo de realizá-lo. Queria virar artista, dedicar-se integralmente à sua vocação... Acabou desistindo. Estudou contabilidade, arrumou um emprego e trocou o sonho pelo trabalho, que ele odiava. Opção feita, rumo traçado, seu objetivo passou a ser unicamente “vencer na vida”: comprar imóveis, carro novo todo ano, roupas de marca, casar, ter filhos, essas coisas.

Hoje ele assombra o apartamento onde seu corpo físico viveu por treze anos, no centro da cidade. Fica a maior parte do tempo sentado numa mesa pequena, no canto da sala, com seu material de desenho, objetos que na verdade não estão ali, no plano físico, e que, por isso, não podem ser vistos pelos vivos, a não ser por aqueles que têm um dom especial, o que é coisa rara. Alguns desses desafortunados veem o jovem sentado à mesa ou andando pelo apartamento; outros sentem “uma presença estranha, ameaçadora...”. Jurandir simplesmente odeia esses sensitivos, pois eles perturbam a sua paz, ficam perguntando coisas, trazem “especialistas” com câmeras, detectores de energia e gravadores, um verdadeiro inferno.

A única vez que ele fez questão de se comunicar com um vivo foi há vinte anos, quando um jovem bancário foi morar sozinho no apartamento. Jurandir se identificou muito com ele, um rapaz de vinte e poucos anos, insatisfeito com o emprego maçante, técnico demais, uma verdadeira camisa-de-força para o seu espírito criativo e fabulador. O jovem queria ser escritor e tinha talento para isso, Jurandir sabia – por isso resolveu interferir, para que aquela vida não se perdesse, como a sua se perdera. Comunicou-se com ele, fez com que mudasse de rumo... Foi só dessa vez... Jurandir não se arrepende... Deu certo...

Hoje à noite Jurandir vai visitar o Cemitério do Bonfim com a loira que assombra o 903. Ela o vem convidando há mais de quarenta anos para esse passeio e ele só negando. Hoje resolveu aceitar. Está cansado da rotina. Quer variar um pouco.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 16/07/2012
Código do texto: T3781113
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