JOÃO NÃO ERA BONECO NEM JUDAS

Rosa Cristina Fernandes dirigia um Corsa Sedan, no dia sete deste, uma quarta-feira, numa das ruas do Rio de Janeiro, itinerário que fazia com freqüência, de volta para a sua casa, quando foi abordada e, consequentemente, assaltada por dois desajustados. No veículo estavam, também, seus filhos João Hélio Fernandes Vieira (6) e Aline (14). Rosa, apavorada, entregou a um dos assaltantes todos os seus pertences, ao tempo em que lhe pediu calma, pois pretendia tirar do veículo o filho João, que estava preso ao cinto de segurança (que ironia, cinto de segurança!). Não conseguiu. João foi arrastado por quilômetros e quilômetros por ruas do Rio de Janeiro, preso, como já se disse, ao cinto de segurança. O que sobrou de João foi quase nada, quando o veículo parou.

A mãe de João, depois da tragédia que abalou a sociedade consciente deste país, contou que “...voltava para casa pelo caminho que fazia diariamente”. Segundo ela, “...havia um ou dois carros parados. Foi quando dois homens correram em direção ao seu carro. Pediu calma aos bandidos, pois João estava preso pelo cinto, e entregou tudo que tinha, pois havia sido assaltada e não queria correr riscos”. Mas “...aí, ele: vai logo, sua vagabunda. Bateu a porta, entrou no carro e arrancou”. “Nessa hora em que ele me xingou, ele me empurrou e bateu a porta. Eu ainda tentei levantar o cinto. Não consegui porque ele arrancou”.

Meu Deus! Em que estado ficou essa mãe ao ver o jovem filho, uma criança ainda, preso a um cinto de segurança, sendo brutal e covardemente arrastado por celerados pelas ruas da bela cidade do Rio de Janeiro, aos poucos destruído pelos impactos sofridos!

Sete quilômetros depois o veículo extorquido parou (ou foi parado). Tarde demais. João já não mais existia. Ali naquele local só jazia restos do João, menino que viveu mas não sobreviveu porque as feras travestidas de seres humanos não permitiram.

Uma testemunha, que dirigia seu veículo no mesmo local, aproximou-se o mais que pôde das bestas humanas e avisou que algo estava sendo arrastado e recebeu como resposta: “é um boneco de Judas”.

João era somente um boneco nas mentes doentias dos marginais e boneco não tem vida, logo...

Ah! Já ia me esquecendo: à pergunta, se não estou equivocado, de um policial a um dos delinqüentes: “se fosse o seu filho?”. A resposta foi rápida, rapidíssima e gelada (eu imaginei estar ouvindo uma besta que fala). -- Eu não tenho filho – respondeu ele.

A sociedade brasileira, embora tenha notícia, escrita e falada, todos os dias, de crimes os mais repulsivos, chocantes e, portanto, inadmissíveis;

...embora tenha notícia das mais escandalosas roubalheiras do erário público por aqueles que têm o sacrossanto dever de protegê-lo;

...embora tenha notícia dos mais indecentes e espúrios conchavos para inocentarem políticos corruptos de toda ordem;

...embora tenha notícia da prática desenfreada, escancarada e descarada do nepotismo, principalmente pelo Poder Judiciário dos Estados (consta que não há nepotismo no STF, o mesmo não podendo afirmar a respeito do STJ. Aliás, a mídia já noticia um escândalo no STJ, sendo protagonista uma filha de um Ministro que não teria obtido nota suficiente para ser aprovada num concurso, mas conseguiu um particular para corrigir suas provas e a justiça (de 2º grau), está garantindo sua aprovação através de liminares);

...embora tenha notícia do, além de corrupto e atrasado, putrefato sistema prisional brasileiro, tido e havido como a mais bem organizada Universidade do Crime, da qual se orgulham (e se não se orgulham não se indignam) as omissas autoridades responsáveis pelos três Poderes;

...embora tenha notícia do trabalho escravo de menores neste país, principalmente no Norte e Nordeste, do qual se beneficiam grandes fazendeiros, empresários e políticos;

...embora tenha notícia da prostituição e tráfico de menores cujos proxenetas e cafetões são, senão conhecidos, pelo menos identificáveis;

...embora tenha notícia de que pessoas morrem nos hospitais públicos porque alguém teria que prestar informações para fazer a ficha do paciente, instrumento extremamente necessário para que ele, paciente, possa ser visto (eu disse visto) pelo médico, quando puder. Mesmo nos estertores, sem ficha, não, não será atendido.

...embora tenha notícia de que o contrato, embora bem formalizado, nada vale se, entre as partes contratantes, um é pobre e o outro é poderoso economicamente;

...embora tenha notícia de que o Poder Público é o primeiro a não cumprir o contrato, porque a legislação lhe é favorável, e, se não é, o julgador o beneficia, uma vez que a relação direitos e obrigações existente entre as partes mão vale para o Poder Público;

...embora tenha notícia de que preto, pobre e prostituta são indesejáveis... Espero que mude o seu conceito, passe a tratá-los com amor, como irmãos, ofereça-lhes uma de suas mãos, mesmo que um deles seja político, mas chame a polícia, se preciso

É verdade que a sociedade está perplexa, especialmente depois da tragédia envolvendo o menino João, mas tenha cuidado, é muito perigoso tentar mudar algo que já está arraigado na preguiça das autoridades constituídas num momento de grande emoção. A emenda pode sair pior que o soneto.

Mas é verdade também que não devemos cruzar os braços e entrar no raciocínio de que quem foi trucidado não foi o João, mas um boneco.

Se bem que todos somos bonecos. Eu também sou um boneco. A diferença entre mim e o menino João é que eu sou um boneco velho.

Viva no Céu eternamente, João.

levy pereira de menezes
Enviado por levy pereira de menezes em 13/02/2007
Reeditado em 08/09/2007
Código do texto: T379276