[Conversa de Formigas]

[Outra crônica... nem tão triste]

Se os bichos falassem... o que diriam duas formigas que tentam atravessar uma rua sem serem esmagadas pelos carros, todos tripulados por gente medrosa que pensa que a morte só acontece aos outros? Pois um dia desses, eu, que na solidão das tardes, ouço vozes junto às quedas d'água dos rios, ouvi uma conversa de formigas, um diálogo que era assim, ou quase assim, ó:

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"É... o número de idiotas mecanizados só aumenta..."

"Tens razão... mas, e aquele lá, no seu carrão chic... olha... quando a morte o pegar, eu ficarei com os olhos, e tu?”

"Ah... podes ficar com os olhos; eu prefiro devorar-lhe a língua!"

"A língua?! Mas por quê... com tanta carne disponível, justamente a língua!?"

"Disse o poeta que de tudo, um resíduo fica; pois eu quero provar pelo menos os restinhos do que, como formiga que sou, não conheço — mentiras, presunção, violências, calúnias... tantos são males que a língua humana produz que me deixam curiosa: como pode tão pequeno órgão...!"

"Arghhh... poetas não são gente prática! E que morbidez é essa?! Cuidado, o teu banquete vai te envenenar, hein?!"

"Ah, não... tenho uma leve esperança de que ali encontrarei também ínfimos restos de palavras de amor... salvo-me com elas!"

"Ah, quanta ingenuidade... estou a ver que não leste Maquiavel: eles são maus!"

"... ou talvez eu esteja me tornando poeta!"

"Agora, além de mórbida, deste para ser irônica..."

O trânsito parou no semáforo distante da curva onde se encontravam as duas formigas filósofas... Elas desceram o meio-fio, começaram a cruzar a pista, e já estavam um pouco além da metade do caminho, quando o semáforo se abriu, e libertou as feras apenas brevemente contidas... Eu me desesperava pelas duas... ah, elas vão morrer! Mas conseguiram, a tempo, se abrigar rente a um dos tacões de ferro que dividem a pista, e ali, estavam a salvo...

"Ufa... por pouco..."

"Acabamos de provar a efemeridade da vida!

"Basta de ironia! Não tem graça ser esmagada por essas feras!”

De longe, ainda ouvi as últimas frases das formigas:

"Como achas que a efemeridade da vida pode ser ensinadas às feras humanas"?

"Só a presença escura e malcheirosa da Morte conseguiria tal proeza!"

"Ah, desde sempre, eles morrem e veem morrer os seus semelhantes, e nunca aprendem! E isto quando não são eles os assassinos..."

"... então, não há mesmo remédio... e vamos, que o semáforo fechou outra vez!"

E lá se foram as duas formigas até outro lado da rua, sãs e salvas. Agora é minha vez de atravessar a rua... O trânsito estruge, ameaça sempre e sempre, pois na terra dos homens o verbo parar quase não é conjugado... principalmente se for justaposto ao verbo pensar...

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[Desterro, 23 de julho de 2012]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 23/07/2012
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