“A Palavra de Deus”... no ônibus

Voltando pra casa, após ter dedicado mais de dez horas do meu dia ao trabalho, exausta, o meu sonho é conseguir uma cadeira a minha espera, para enfim descansar durante um percurso que dura uma média de cinquenta minutos. Isso na segunda condução que tomo, pois na primeira nem adianta sonhar, está sempre lotadíssima.

Há dias em que esse sonho não se torna real, como aconteceu ontem. Apanhei o coletivo com todos os assentos ocupados, e também todos os seus outros espaços. Pra começar, um jovem, distraído, que provavelmente não tem o hábito de andar de ônibus, fez morada na catraca. E tudo o que eu mais queria naquele instante era sair do imprensado terrível que se formava na parte traseira do ônibus. Dei uma cutucada no ombro dele e ele me olhou com desdém. Achei ele um idiota, mas não disse nada, ele era grandão.

Seguimos viagem. E o rapaz parecia preso naquele lugar, completamente alheio ao que acontecia ao seu redor. Atrás de mim, uma senhora com uma criança pedia passagem, e eu de novo cutuquei o menino no ombro: “preciso passar!”. E ele, com uma cara de nada: “pode passar!” Odiei aquele rapaz. Creio que um pouquinho só de boa vontade bastaria para que o estresse vivido dentro de um coletivo fosse menor.

Finalmente consegui passar. E a senhora que vinha depois de mim, precisava descer dali a pouco. Abri caminho, facilitando sua chegada até bem próximo da porta dianteira. Consegui, por sorte, me posicionar de forma a merecer o vento vindo das janelas. Que alívio! E ainda me beneficiei com a coluna de ferro lateral de uma das cadeiras, onde pude me segurar.

Quando me veio a ideia de sossego, uma voz, por entre os passageiros: “amados irmãos, com licença, a paz do Senhor esteja com vocês!” Ah, jura? Foi o meu pensamento. Acabada de cansaço, dor de cabeça, o nível de tolerância rente ao chão, aí me vem um “enviado”, querendo me atirar a palavra de Deus. Muita coisa num ônibus me irrita: música alta, ao gosto do motorista; música tocando nos aparelhinhos modernos da vida (como se ainda não tivessem inventado os benditos fones de ouvido), pessoas falando no celular, dando ciência de sua vida a todo mundo que está por perto... mas a pregação, sem ambiente, sem um minuto de silêncio para entrar no clima, é muito difícil!

O cara começou: “irmãos, não estou aqui para vender nada, simplesmente trago pra vocês, nesta noite, a palavra de Deus...” Pra cima de mim! Claro que aquilo não era a troco de nada! Falou, falou, falou, e bem perto de mim, gritos que doíam nos meus ouvidos. Ele precisava falar alto para que todos o ouvissem. Mas eu fui penalizada porque estava ao seu lado. Quase pedi pra parar. Pensei em dizer “cala a boca, imbecil!” Mas isso podia me custar caro. Ele, assim como outras pessoas ali, poderiam achar que era o demônio que se manifestava em mim. Então fiquei quieta.

No final o cara fez a coleta das “doações”, informando que quem quisesse poderia ajudar até com um vale-transporte. E isso não é venda? Não vou me aprofundar em questionamentos, mas me incomoda muito a evangelização dessa forma. Lembrei daquela expressão das pérolas dadas aos porcos e não me senti nada mais que um deles.

Maria Celça
Enviado por Maria Celça em 31/07/2012
Reeditado em 14/08/2013
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