ME PASSA A SALADA...!

Há coisas que por dependerem de mais atenção, tornam-se pouco visíveis e audíveis, até mesmo invisíveis e mudas. É o caso de frases ditas dentro de algumas músicas que ficam abafadas pela harmonia e arranjo dos instrumentos. O pianista alemão Keith Jarrett costuma soltar algumas interjeições durante seus concertos, talvez algumas palavras, frases, mas a magia de sua música esfumaça qualquer tipo de verbete oral.

No disco Tropicália de 1968 na faixa Panis et circenses , no final da música, ouvimos o som de pessoas, como a própria letra diz “na sala de jantar”, falando ao mesmo tempo em que sons de pratos, copos e talheres abafam o que elas dizem. Ouve-se uma voz, parece a de Caetano, dizendo: “me passa a salada...!”, e essa frase, para mim, resume todo o conteúdo do que representa: “as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer.”

Existem pessoas que também ficam um pouco nesse “limbo” de coisas colocadas de maneira a não serem facilmente percebidas. Estão no movimento, assinam os manifestos e depois vestem suas capas e vão conversar com a natureza como pólen fecundando óvulos que viram sementes.

Torquato Neto é um desses personagens que a cultura brasileira pouco reconhece. Poeta, letrista de música e ativista da contracultura, não viveu muitos anos , mas com a experiência de quem sabia passar mensagens nas entrelinhas. Defendia a brasilidade da cultura: “Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido".

O poeta viveu tempos de angústia e solidão quando seus amigos e parceiros foram exilados, no final da década de sessenta. Isolado e vigiado pelo AI-5 não podia mais defender suas posições vanguardistas, passando a ser perseguido pela “patrulha ideológica” de esquerda. Rompeu com os amigos e buscava a companhia de pessoas “esquisitas e estranhas” que viviam perambulando pelas ruas. "Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela.”

Torquato Neto suicidou-se dias depois de completar vinte e oito anos, em 1972. Depois de voltar de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Deixou esta nota: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar “. Thiago era seu filho de dois anos de idade.

Ricardo Mezavila
Enviado por Ricardo Mezavila em 09/08/2012
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