EM BUSCA DE UM MILAGRE

Quando fiz 13 anos tive uma crise de reumatismo infeccioso causado por infecções constantes de garganta durante toda a infância. Naquela época resolvia-se o problema sem tratamento médico. Eram gargarejos, injeções de penicilina com streptomicina (me lembro bem deste nome), que meu pai aplicava no meu braço fino e quase infantil ainda, e o deixava roxo por mais de uma semana.

As crises eram constantes. A cada mudança de temperatura vinham febre e dor de garganta, e a saúde ia se debilitando aos poucos.

Um dia meus pais foram convidados para serem padrinhos de casamento de um casal de japoneses, e eu estava com a garganta começando a inflamar.

Uma das filhas do casal havia sido nossa vizinha, e ficamos amigos de toda a família. De vez em quando íamos ao sítio dos pais dela para uma visita, e lembro-me muito dos deliciosos bolinhos de feijão que eles faziam e nos ofereciam. Que delícia!

Entre os japoneses era comum haver uma festa, em primeiro lugar na casa da noiva, e depois, à noitinha Havia o casamento na igreja, e em seguida, a festa do noivo.

Fomos cedinho para o sítio da família da noiva, da qual meus pais seriam padrinhos. Gostávamos muito desse pessoal. O noivo, juntamente com sua família, permaneceu lá até à hora do almoço, e voltou para sua casa a fim de se preparar, e receber a noiva no altar.

Passamos a manhã toda em festa, comendo de todos os quitutes japoneses. Os japoneses tinham preferência pelos doces, e nós crianças adorávamos aquelas iguarias. Houve o almoço igualmente farto, e mais tarde aparece a noiva vestida de branco para o casamento na cidade do noivo.

O carro com a noiva seguia na frente, e os convidados seguiam-no com seus próprios carros e famílias.

Era uma alegre procissão de carros seguindo pela estrada, O carro dela estava todo pendurado de latas, que faziam uma barulhada festiva enquanto todos seguíamos e fila, sorridentes, na expectativa da próxima festa à noite.

O casamento foi muito bonito; o salão onde estavam nos esperando para a festa foi muito bem ornamentado, e nossos olhos infantis se deslumbravam com tantos enfeites coloridos, e leques japoneses distribuídos pelo salão. Tudo muito a rigor, dentro dos costumes japoneses.

Tudo estava correndo muito bem, mas eu estava com febre. Comecei a sentir calafrios, mas não quis preocupar minha mãe. Fiquei quieta, e tentei me esquecer da dor de garganta e da sensação de frio que aumentava.

Acordei 3 dias depois. Uma febre de 40° fez-me desmaiar durante a festa, e só então meus pais notaram que eu estava muito mal.

Estive praticamente em coma, desacordada por três dias, e todas as juntas do meu corpo se incharam. Eu respirava mal, com o coração completamente desritmado, pressão baixíssima. Isto nunca houvera acontecido antes, e meus pais ficaram desesperados. Eu estava à beira da morte, e nada me fazia acordar.

Fiquei sabendo deste desmaio somente muitos anos depois, pois meus pais temeram que eu ficasse afetada psicologicamente pelo fato, e isto me deixasse fragilizada, se repetindo outras vezes pelo medo e ansiedade de voltar a acontecer.

Quando acordei não conseguia segurar um copo para beber água. A febre cedeu lentamente com alguns antibióticos, que fizeram ceder a inflamação da garganta, mas estava imóvel na cama. Qualquer movimento baixava minha pressão, e escurecia tudo à minha volta. O coração acelerava como se eu tivesse corrido quilômetros.

Havia necessidade de ter muito cuidado, pois poderia ter um colapso a qualquer movimento, e um médico que me atendeu passou-me uma medicação toda errada, dando-me tratamento para o rins, por estar inchada.

Fui tomando os remédios prescritos, mas nada fazia a inchação melhorar. As dores nas juntas continuavam me impedindo de andar, e quando conseguia fazê-lo, perdia o jogo das pernas, de repente, e quase caía.

Durante dois meses fiquei na cama, e impossibilitada de ir à escola ou mesmo fazer um esforço um pouco maior. A maior parte do tempo permanecia dormindo, pois a pressão sempre se mantinha muito baixa, e o coração acelerava a qualquer esforço.

Minha mãe não dormia com medo de que eu parasse de respirar durante a noite. Toda hora vinha ao meu quarto e colocava a mão perto do meu nariz para sentir se respirava., e com isto eu acordava, mas dormia em seguida. Não tinha forças para nada.

Meu pai começou a achar que eu morreria, e chamou o padre Lima, já velho, que pertencia à nossa paróquia, para me dar uma bênção, e foi este padre que,por obra de Deus, e sem nenhuma noção de medicina acabou por dar uma sugestão que salvou-me a vida.

Ele pegou os meus pulsos e percebeu que meus batimentos cardíacos estavam completamente anormais. Ora batiam acelerados, ora lentos, e isto era sintoma de problema cardíaco muito sério. Sugeriu ao meu pai que me levasse a um cardiologista para saber o que realmente havia, e na nossa pequena cidade do interior de São Paulo, não havia nenhum médico desta especialidade. Seria necessário marcar uma consulta numa cidade vizinha, e foi o que meu pai logo providenciou. Tudo o que pudessem fazer para salvar minha vida naquele momento precisava ser feito, urgentemente.

No dia marcado fomos à consulta, e quando o médico bateu os olhos em mim, do outro lado da sala, já reconheceu imediatamente o meu quadro. Eu estava com um reumatismo infeccioso grave, que havia afetado a válvula mitral do meu coração.

Ao caminhar em sua direção, a pressão começou a cair, fiquei ofegante e meus olhos escureceram. Via apenas pontos de luz e o vulto dele na minha frente. Não conseguia definir seu rosto. Ele me colocou deitada e examinou-me minuciosamente, mas seu diagnóstico de médico hábil já percebera desde o primeiro instante todo o perigo.

Prescreveu-me imediatamente uma injeção de Bezetacyl, que na época era um pó misturado a um óleo, que deveria ser injetado rapidamente para não secar na agulha, e era muito dolorosa, mas este não era o maior problema. Eu poderia morrer ao tomar a primeira injeção, caso meu organismo rejeitasse o antibiótico fortíssimo, e eu tivesse um choque anafilático. Havia uma chance de 10% de sobrevivência, se eu ultrapassasse à primeira dose da injeção.

Meu pai ficou apavorado. Eu poderia morrer ali na farmácia, e antes de irmos para lá, entramos numa igreja, onde ele fez uma promessa a Nossa Senhora, de que me levaria a Aparecida do Norte se eu conseguisse sobreviver ao tratamento, e à primeira injeção.

Fomos à farmácia movidos pela fé que ele tinha, pois eu não entendia exatamente a gravidade do meu quadro, nem sabia da promessa que ele fizera. Eu também era uma menina de muita fé, desde criança, mas não fiz promessa alguma. Estava cansada, e não me importava morrer.

Na farmácia fizeram-me um teste alérgico. Havia uma série de prescrições do médico, que deixaram o farmacêutico apreensivo, mas ele seguiu tudo com cuidado, e consegui superar o risco da primeira injeção. Minhas chances de viver aumentaram a partir daquele momento.

Voltamos ao médico, e ele prescreveu novo tratamento, que eu deveria fazer até voltar para a revisão dentro de quinze dias, quando tomaria nova injeção.

Fui melhorando aos poucos daquela crise, e até voltei a estudar. Minha saúde era fraca, qualquer esforço me abatia, e a pressão baixava, mas não tive mais crises de garganta, nem febre, tão constantes na minha vida desde a infância, e o inchaço e as dores das juntas desapareceram aos poucos.

Depois de algum tempo, e passado o risco inicial, a sugestão do médico era de que eu fosse para S.Paulo para ser tratada pelo Dr. Zerbini, considerado a sumidade em cardiologia, na época. Ele havia feito o primeiro transplante de coração do Brasil, com sucesso, logo após o Dr. Barnard ter feito o primeiro também, no exterior. Ambos foram para a lista dos grandes feitos na medicina, e eram absolutamente confiáveis em matéria de tratamento do coração.

Com uma carta do médico nas mãos, fomos para S.Paulo, e meu pai procurou o Governador do Estado, pois ele era professor da rede estadual. Foi recebido pessoalmente por ele, na época o Dr. Ademar de Barros, que escreveu de próprio punho um bilhete ao Dr. Zerbini pedindo-me preferência no atendimento, que era urgente.

De posse das duas cartas, fomos ao Hospital das Clínicas dar entrada no primeiro pedido de consulta. Fomos muito bem atendidos, e a consulta foi marcada para o dia seguinte, apesar de precisarmos enfrentar uma fila enorme de pacientes que já estavam marcados anteriormente. Finalmente chegamos ao consultório do famoso Dr. Zerbini. Ele era um senhor na faixa dos cinquenta a sessenta anos, muito simpático e aparentava tranquilidade. Brincou comigo dizendo que eu havia sobrevivido por um milagre, e que eu devia agradecer muito a Deus por ter sobrevivido àquela primeira prova, pois foi um período muito perigoso, mas agora seria mais fácil controlar a situação. O pior havia passado, mas talvez eu precisasse de um transplante da válvula Mitral.

Fazer uma cirurgia destas em 1965 era um risco de 90% de não sobreviver, isto é, voltaria a ter 10% de chance novamente.

Na próxima consulta, depois de um tratamento severo prescrito por ele, e continuando com as injeções prescritas pelo outro médico, ele marcaria a data da cirurgia.

Meu pai chorou quando saímos dali. Ele chorava escondido, mas eu percebia, mesmo ficando em silêncio respeitando seu sofrimento. Dali fomos ao hospital do Servidor Público fazer outra consulta que estava marcada, e o cardiologista queria imediatamente operar minha válvula. Ainda tentou brincar dizendo que eu devia "entrar na faca" imediatamente. Mais assustados ainda saímos dali, e meu pai, muito nervoso tomou uma resolução. Fomos direto à rodoviária, e eu não estava entendendo nada.

Nossas malas haviam ficado na casa do primo Luiz, e como iríamos voltar sem nos despedirmos e pegar nossas coisas? Ao invés de comprarmos uma passagem para Paraguaçu, onde morávamos, papai comprou uma passagem para Aparecida do Norte. Não havia tempo a perder. Meu caso era para entregar nas mãos de Deus, sem demora. Viajamos por aproximadamente duas horas e chegamos ao nosso destino.

Dentro da igreja vi na expressão do meu pai, o desespero que sentia por necessitar tanto de um milagre. Se eu fizesse aquela cirurgia provavelmente não sobreviveria, pois praticamente seria uma cobaia nas mãos dos médicos, que tão recentemente haviam feito o primeiro transplante com sucesso. Isto não significava que o meu caso também seria um sucesso, e com toda a fé, ele rezou fazendo mais uma promessa. Não soube qual foi, pois não perguntei. Ele somente disse que Deus estava do nosso lado, e tudo daria certo.

Voltamos a S.Paulo no mesmo dia, e chegamos ao anoitecer em casa do primo Luiz. Ele estava mais alegre e tranquilo. Parece que a confiança em Deus o deixou sem o medo anterior. Tinha confiança absoluta de que Nossa Senhora, em quem tinha uma fé absoluta, não me abandonaria.

De S.Paulo buscamos nossas malas na casa do primo, e tomamos o ônibus mais à noite para nossa cidade.

Eu era vigiada 24 horas por dia. Durante a noite, por várias vezes, eu acordava sentindo a mão da minha mãe perto do meu nariz, observando se eu respirava, e isto se repetiu por vários anos. Ela não ficava tranquila se não o fizesse.

Nunca mais tive febre ou infecção de qualquer tipo. O difícil era tomar as injeções prescritas, mas minha vida dependia delas, e eu fui me tornando forte e resistente à dor que elas provocavam. Nunca chorei ou resisti ao tratamento doloroso, ou aos efeitos que as injeções me causavam. Aprendi a resistir à dor desde muito cedo.

Voltamos a S.Paulo mais umas quatro vezes, de seis em seis meses, e o Dr. Zerbini já não via necessidade de cirurgia. Faziam, no hospital, uma bateria de radiografias em todas as posições. Os alunos de medicina vibravam com meu perfil já com seios de menina moça, no auge da adolescência, com quase 1,70m de altura e 15 anos de idade. Completamente tímida e recatada, quase morria de vergonha do entusiasmo dos rapazes que estudavam meus exames, e não conseguia olhar para eles. Meu pai, sempre muito severo, olhava para eles com os olhos faiscantes de raiva, como se estivessem me desrespeitando, mas nada podia dizer. Esta era uma reação normal na idade deles, e estavam ali estudando, mas eram homens como quaisquer outros.

Minha válvula Mitral não estava perfeita, mas suficientemente boa para eu viver praticamente de forma normal. Havia muitos cuidados a tomar, mas estava tudo acontecendo milagrosamente. O médico estava admirado com a melhora no meu tratamento, e não entendia como, de uma hora para a outra, a possibilidade da cirurgia caiu por terra, mas algo havia acontecido, que me fez voltar a vida normal gradativamente.

Aos 21 anos fui para Belo Horizonte fazer faculdade e morar sozinha. Após o término da faculdade me casei, e tive três filhas de parto normal. Foram 15 anos tomando Bezetacyl de 15 em 15 dias. Desde a primeira gravidez não precisei mais usar as injeções. Meu organismo estava resistente aos streptococus, e o tratamento dissolveu completamente as amígdalas. Nunca mais tive amigdalite.

Durante muitos anos apenas fiz o controle anual da válvula por um cardiologista conhecido, e só vim a sentir mudança no funcionamento dela aos 45 anos, quando trabalhava no BEMGE, e este foi encampado pelo Banco Itaú. A expectativa de ser despedida juntamente com outros 3.000 colegas, que semanalmente foram sendo demitidos, fez minha pressão subir, e meu coração começar a crescer do lado esquerdo. A válvula já não funcionava como antes, e o nervosismo daquela expectativa fez-me novamente dependente de remédios.

Voltei aos consultórios médicos, pois novamente havia risco de cirurgia, mas felizmente os remédios para o controle da pressão arterial conseguiram normalizar o funcionamento da válvula dentro de padrões suportáveis para minha saúde se manter.

Hoje estou com 59 anos. Superei muitas dores, que nunca imaginei viver ou conseguisse superar, durante estes anos. Em 2005 meus pais morreram com diferença de 15 dias um do outro. Dois meses antes eu havia passado por um processo doloroso de separação que vinha se arrastando há cinco anos. Depois de todos estes acontecimentos em um período tão curto passei por um forte stress, que me deixou por um tempo meio esquecida, e algumas manifestações de depressão, mas como o tempo é o melhor remédio consegui superar tudo aos poucos, sendo que a depressão é um quadro que pode me levar à mesa de cirurgia. Agora se passaram 7 anos, e o coração só se manifestou com batimentos mais lentos na última consulta de controle anual que fiz, no mês passado. Ele estava com os batimentos muito abaixo do normal. De 70 a 80 batimentos por minuto, caíram para 50, o que significa uma mudança importante e perigosa. Seriam necessários novos exames para verificar o por quê do ocorrido, mas antes de marcá-los, e como eu não sou do tipo que corre para o médico com medo de morrer a cada sintoma, deixei passar alguns dias, e ocorreu algo que há muitos anos não ocorria.

Numa destas noites passadas havia tomado um chá de erva doce, e estava dormindo profundamente. De repente fui acordada por uma voz ao meu ouvido dizendo:- Você não está respirando?

Não me assustei no momento. Foi como se aquilo fosse absolutamente normal. Voltei a respirar levemente a princípio, como se quisesse mostrar que sim, estava respirando. Mas mostrar a quem?

Em seguida acordei em definitivo, e fiquei imaginando de quem seria a voz que me despertou. Lembrei-me então do que a médica havia dito sobre os batimentos cardíacos baixos, e na sequência, da voz da minha mãe dizendo:- Você não está respirando?

Há dias penso naquela voz me dizendo isto. Mais de 40 anos se passaram desde o tempo em que ela vinha verificar se eu estava respirando, mas nunca dizia nada. Eu apenas sentia o calor da sua mão se aproximando do meu nariz.

Fico me perguntando! Será que eu parei de respirar com os batimentos muito lentos, e ela veio me acordar, ou foi o meu subconsciente que me alertou para o perigo? Fica aí a pergunta que não consegui responder até agora.