Do que fugimos? Você já pensou nisso?

Dezembro de 2008, Natal.

A casa, apesar de quase toda em pintura branca, era pregueada em cores diversas, em tons natalinos vociferados em diversos signos, aniversário de mágoas manifestadas em lógicas cronológicas. A cada passo, um momento de crucificação.

Bebida à vontade, erro crucial. Algumas pessoas não podem beber. Tornam-se insuportáveis. Hidromel, bebida apreciada pelos romanos e gregos, porém, os nórdicos acreditavam ser a bebida preferida dos deuses. Pobres mortais. Não podem beber. Deuses não são insuportáveis, pois não suportam. Nós, suportamos, assim, somos insuportáveis, contradição sem lógica, mas em mesa de Natal, enquanto um parente bebe o Hidromel, e começa a falar o que não se deve, não nos resta muito. Junte-se, mas nunca será tão chato quanto ele. Beba para esquecer o ontem.

Meu irmão falava “você é linda”. Como assim? Minha mãe “ah, na próxima comemoração quero você aqui presente, que encanto de pessoa”. Preciso de Hidromel, pois preciso particularizar meu ato etílico. Quando bebo, o mundo fica distante e de repente, acredito não ser mais desde mundo imundo, desculpe o trocadilho vil.

Esse é o início.

Janeiro de 2009

Piúma. Praia horrível. Feia, areia escura, fétida, mas com parentes indigentes de afeto, moradores da rua do coração, então, que lindo lugar. Feliz passeio. Dormimos abraços, pois em minha insônia, obrigação sublime, imposta por Deus, enquanto meu pai ao pé da minha cama orava para que eu dormisse como uma criança normal não avistava o resultado desejado. Em Piúma, com as pessoas erradas que conheci na vida, desde minha parição, considerei capaz de abraçar alguém e conseguir dormir. Devaneio. Nunca dormi...

Fevereiro de 2009

Belo Horizonte. Caos. Transito caótico, reflexo furtivo das nossas próprias vidas. Do que fugimos? Você já pensou nisso? Vale à pena fugir? Coloque caixas e malas do lado de fora da porta. O corredor tornou-se declarante do ato imprevisto, rebotalho do que sempre foi este tipo de atitude. Mas foi assim, espectador testemunhal de um ilogismo. Feito. Causa priori de todos acontecimentos ulteriores aqui.

Sem data. Atemporal.

Uma vez alguém me disse que “todas as pessoas valem à pena” e simplesmente desapareceu. 1932. Talvez morta em luta. 1942, feita refém em batalha. 1969, contra a revolução, manifestação, bandeira, tortura, morte. Mas foi outro dia. Não... as pessoas não compreendem o que afirmam... O pior, não acusam o arrojo, a bravura, a coragem para assumir as consequências, então, desaparecem. Melhor assim. Esgueirar-se... Mais superficial, elementar, claro, banalizar as relações, não enfrenta-las.

Quatro anos mais tarde.

Um dia de trabalho normal. Mais um desejo quase intermito. Por que não tentar mais uma vez? Será que renascer é uma opção? Meu alvitre, eclodir diante dela. Terminação neural cortada em um quarto escuro, recôndito, não avocar a origem, simular que nunca subsistiu tal momento. A mente humana é maravilhosa, consegue construir momentos nunca acudidos, jamais subsistidos, porém, fidedignos, e assim, de geração em geração, contamos como foi a historia, a origem das nossas famílias.

A casa ainda branca. Talvez mais branca do que eu lembrava. O que falar? Ser fiel ao que se sente. Quando beijo você, meu coração desengatilha, mas não é ele que determina a veracidade do beijo e sim o afago em si, o carinho, o encanto trazido à tona no momento. Quantos anos de ausência? Nossa, mais de quatro anos de silêncio. Tornei-me taciturno, como antigamente... Mas hoje falo enfadonhamente. Não vou conseguir.

Entrei. A casa não mudou nada. Branca como a neve. Não havia os signos magoados do Natal de 2008. Uma cadeira de balanço que oscilava ao nugativo e inadiável flagrante. A TV narrava detalhes dispensáveis para a ocasião. Engelhada estava minha mãe em uma cadeira de balanço. Ventania que se formava acidental, incipiente em meu ser. Era o mais brando que eu conseguiria alcançar. Ela olhou para a porta, como se nada lá houvesse. Por alguns segundos seus olhos alcançaram o infindável de uma confinante vetustez. Calabouço opcional. Refugo dos que não conseguem lidar com suas escolhas de um tempo findo.

Mãe? Sou eu? Lembra de mim?

Por um momento o tempo envelheceu mais ainda. Quis ligar para você. Mas não posso. Cheguei a pegar o celular. Procurar o seu número. Não. Não tenho relação de causa que satisfaz o contra senso de alguém. A aflição fez-me virar para a porta. Movimento metódico de deixar-se fora de onde deseja-se tanto estar. Fazemos tanto isso. Vou retirar-me, não, na verdade, vou escapar...

Mãe? Sou eu? Lembra de mim?

Seu olhar alheado ao que presencia queria dizer algo. Suas mãos se agitaram. Aproximei ao ponto de sentir zéfiro curvar-se sobre mim. Mãe... Lembra-se de mim? Só quero deitar em seu colo e descansar meu cansaço.

Não importa qual seja ele. Acalento de uma vida inteira de severos momentos, escolhas equivocadas, pessoas erradas que conheci. Ninguém é demais o bastante para admiramos. Devemos olhar o mundo cinza e escuro. Mãe, não foi isso que você me contou! Mas é isso que tenho visto.

O abraço veio inicialmente indiferente e insensível. Mas aos poucos renovava-se como outrora. O velho abraço transfigurava-se no momento em que a luz divina em mim entrou. Quando o primeiro choro surgiu. Aquele abraço de mãe, quando descobrimos que a única coisa que podemos fazer por nossos filhos é apenas amar, mais nada, causa que satisfaz plenamente o ato de desejar criar, a partir de limitadas partículas biológicas, um ser humano, incorruptível desde a nascença e socialmente, antropologicamente pecador.

Levantei-me. Olhando fixamente para aqueles olhos longínquos, privados das minhas lembranças, dos meus momentos, do que fui. Caminhei até a porta. A luz do sol desenhava no chão o vitral quase sagrado, fixo naquela porta. Movimento obrigatório e permitido de abrir e fechar o que se pode ou o que se deve.

Percorrido caminho de volta. Da mesma forma. Já era noite. O portão produziu um ruído áspero ao ser aberto. Declaração plena de quem furta a confidência alheia. Entrei no carro e parti sem olhar para trás...