Oras bolas, caçarolas!

Final de 2. milênio. A maior das minhas vontades era sair fotografando São Paulo: os lu gares, os rostos, as variadas situações de desafio, a pluralidade, a alegria, a esperança. Tratei de guardar alguns jornais, revistas, informações preciosas daquela época. Com o tempo, algumas comparações seriam possíveis e oportunas para boas conversas e aulas da história recente do país.

Sem falar propriamente no fim de um milênio, seria também falar e sentir o final de um século: o mais trágico da história, com duas guerras mundiais, nazismo e fascismo entre elas, as grandes crises econômicas com desemprego sem-fim. Tempos de radicalismo, holocausto, massacres, guerra do Vietnã, construção do muro de Berlim, Mao Tsé Tung arrasando toda uma memória com a Revolução Cultural, ditaduras, prisões políticas, negação das vontades mais elementares de qualquer ser vivente...

Mas também tempos de sonhos. Ah! Nisso o século XX foi farto! Gandhi foi o mais notável símbolo de resistência à violência e de valorização da liberdade. A busca por direitos, o feminismo, movimentos culturais da juventude, festival de Woodstock, “faça amor, não faça a guerra”. ... e viva a sociedade alternativa...

Para nós, meu Deus! O século XX trouxe a Semana da Arte Moderna, o desenvolvimento científico e tecnológico , uma república recém-nascida com alguma idéia de progresso e de modernização. Final dos anos 50, Juscelino e o industrialismo. Na cultura, a Bossa Nova e, pouco mais tarde, os festivais da Record, com o brilhantismo do Chico, da Nara Leão, do Vandré, Jair Rodrigues, Caetano, Gil, Os Mutantes, Sérgio Ricardo quebrando o seu violão... Tempos de buscas constantes, do “é proibido proibir” e da grande inovação no campo da moda: o uso da calça Lee entendido também como caminho para a liberdade. Tempos de crítica ao tradicionalismo, à Igreja Velha. E, nas buscas, fomos estudar mais, a urbanização e as novas necessidades nos indicando o caminho da escola.

E eu querendo fotografar a cidade do final do século e do milênio, registrar aquela atmosfera ímpar, as seqüelas do século mais violento e mais criativo de todos os tempos.. . chegou dezembro e fomos passar as nossas férias anuais em São Paulo.

Câmara fotográfica em punho, eu já ia me vendo saindo de casa - da casa da minha sogra, na Vila Sônia, onde nos hospedávamos e o meu filho, ainda criança, ficava sob a tutela da avó, amorosa, alegre pela visita e sempre atenta, disponível para produzir bolos deliciosos e uns bons pratos de batatas fritas.

Eu já vinha maquinando: visitaria os meus bairros mais diletos: Bixiga, Cambuci, Ipiranga, Mooca (orra, meu), a avenida Paulista inteiríssima, a própria Vila Sônia e o que mais fosse possível. Eu haveria de fazer um registro próprio, um álbum, mostraria para pessoas interessantes e interessadas e que gostassem de falar das coisas do tempo.

Primeira noite em São Paulo: eu mal conseguia dormir dada a quantidade de projetos. Aquela ansiedade positiva me inundava por completo à espera do amanhecer. Sim, eu fotografaria pessoas em trânsito nas mais diversas situações. Antes, eu explicaria o propósito das imagens. Eu seria atendida com solicitude pelas pessoas abordadas que compreenderiam o meu intento. Ficaria tudo mais fácil e prazeroso. A recompensa: flashes do cotidiano paulistano no final do milênio.

Cinco e pouco da primeira madrugada na minha cidade acordei . Gemidos fortes e angustiantes ecoavam. Acordei assustada e tensa, fui direto para o quarto da minha sogra. O joelho... uma dor lancinante, paralisante no joelho... meu Deus, e agora? Médico sendo chamado, todas as medidas foram prontamente tomadas... eu não me lembro o diagnóstico, mas a minha sogra ficou semi-paralisada durante toda essa nossa estada em São Paulo.

Cuidei dela, sim, e com muita atenção e responsabilidade, mas eu dava umas saídas rápidas para resolver o meu sonho. Tudo daria tempo: os cuidados para com ela, mas, como também sou filha de Deus, eu conseguiria o meu intento, mesmo que fosse apenas na Vila Sônia. Já daria prá quebrar o galho.. . Então eu parava as pessoas na rua, explicava o objetivo das conversas e das fotos, mas possivelmente aquelas pessoas não acreditavam no meu propósito. E não queriam ter os seus rostos congelados na minha Kodak.

Tudo bem. Conversava com outras pessoas, e nada... Algum depoimento, menos ainda.

Eu não devia estar sendo nada simpática, quem sabe exalando uma energia dura, ruim , de poucos amigos. Deve ser isso.

Numa manhã de pouco sol, próximo ao shopping Butantã, vinha, na minha direção, uma família nordestina, pobre, com poucos dentes, arrastando um filho pequeno, carregando algumas sacolas de roupas usadas. Eu me aproximei e mais uma vez expliquei a situação e tratei logo de posicionar a máquina quando a mulher disse, sem muita simpatia: “não tira. Estamos com pressa”.

Agradeci. Entrei no shopping como quem não tem alternativa. Tinha um banco vazio defronte à Le Postiche. Foi ali mesmo: eu me sentei e chorei copiosamente. Com lágrimas amargas e grossas, com a cabeça entre as mãos... e solucei na minha solidão. O plano acalentado pacientemente nos últimos anos do milênio foi rio abaixo. Eu não teria como fazer o álbum e nem teria recursos para poder me sentar com algum outro saudosista e amante da História do Brasil para conversar horas sem fim.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 17/08/2012
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