pintura de Willard Monteiro





Ilusão do sertão




 
Laranja! Porque havia de ser laranja o seu uniforme. A cor que mais detestava! Recordava sua cidade natal onde quase tudo era cor de terra! A mulher e filhos, que deixara para trás!

Há oito anos, tinha vindo para o sul em busca de verde, de emprego e de esperança! Naquele momento, ou era ele, ou ninguém! Assim como tantos, viajou com a ilusão de que em apenas alguns meses conseguiria trazê-los.

Olhava para seu corpo. Sua pele morena, já viera bastante marcada pelo “ardume” do sol. Mas sua face mostrava-se agora, além de enrugada e sem viço, bastante assustada.

Alcançara os cinquenta e oito anos. Não imaginava São Paulo esta terra fria toda feita de cimento. Tinha saudades até de seu jumento! E para falar a verdade, perto do povo daqui, ele até que se sentia gente.

Enquanto juntava papéis, lixos etc... observava atentamente o movimento naquela imensa avenida. Tinha receio de ser atropelado. Todo mundo corria: a pé, de carro, de ônibus, de moto e até de bicicleta e um não olhava para o outro. Nunca. Achava estranho. As mulheres então... Porque andavam agarradas em suas bolsas, como se a qualquer momento alguém pudesse arrancá-las! O que sempre acontecia, bem perto do posto policial.

Nesse espaço de tempo, não teve oportunidade de juntar sequer uns trocados. Mal tinha conseguido sobreviver com os ‘bicos’. Já havia desistido de trazer a mulher e filhos. Vez ou outra lhes mandava uma carta. Sua vizinha ‘botava’ as letras no papel! Não os queria aqui sofrendo em meio à essa massa de pedra.

Fazia muito calor. Debruçado sobre sua vassoura, sentia seus pés afundarem naquele chão escuro. Os prédios lhe apertavam a garganta. O barulho parecia ferir seus ouvidos. Mal conseguia ver o céu. Ah! Isso no seu sertão não acontecia. Ele se sobressaia sempre. Até no meio da rudeza e solidão.

 Apesar de tudo, estava ‘colocado’. Era o que mais importava! Pretendia mais da vida, mas fazer o quê? Finalmente, havia conseguido o emprego de gari.

Olhava de novo para o uniforme. Mas por que laranja! Se bem que ficava muito pior no seu vizinho de barraco, que era ‘branquelo’ como tal!  Sua pele morena, neste caso era obrigado a concordar, favorecia a sua pessoa. Mas num aspecto eram idênticos. Os dois não conseguiam sequer decifrar uma letrinha! Eram absolutamente ignorantes. Mas não bobos. Ah! Isso não! Eram bastante espertos. Não tão jovens, porém cheios de ‘vigor’.
 
Com uma imaginação fértil, e sem mulher em casa, ‘botava’ os olhos em todas que por ali passavam. Sua mente produzia ‘fantasias’, ouriçava seus desejos.

O que lhe restava nesta vida! Pensava em sua família, e em tudo que não poderia resolver. Tinha a intenção de retornar para a sua terra, mas não nesta pobreza. E o que teria para contar? Da fome, dos roubos, dos assassinatos, da polícia, dos moradores de rua, das promessas, das desfeitas, das humilhações. Da sua vontade de virar ladrão?

Ajeitou seu carrinho, sua vassoura, seus apetrechos e seguiu em frente. Distraído, trombou em alguma coisa: um homem distendido na guia! Assustou-se! Ele tentava falar alguma coisa, mas ninguém parecia interessado em ouvi-lo.  Nunca havia presenciado tal cena! Na minha terra isso jamais aconteceria. Mesmo pobre, um ajudava o outro.

 A avenida fervilhava. As pessoas, tão somente curiosas, esticavam o pescoço, olhavam... e  seguiam em frente acompanhando a pressa.


Na derradeira cena: apenas eu, meu carrinho... e aquele corpo no chão!






 
 
 
 
heleida nobrega
Enviado por heleida nobrega em 20/08/2012
Reeditado em 21/08/2012
Código do texto: T3840004
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