Eu, Nelson Rodrigues e uma cabra vadia

Era meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Boa hora para matar, para morrer, ou simplesmente para dizer as verdades atrozes. Estávamos num terreno baldio. Eu, Nelson Rodrigues e uma cabra vadia. Há coisas que só se confessa num terreno baldio, à luz de archotes, e na presença de apenas uma cabra vadia. Alhures, uma coruja pia. Nelson foi pontualíssimo. Chegou exatamente quando o sino da matriz dava as doze badaladas. Ele estava ali completando o seu centésimo aniversário. "Sou tão velho como o Antônio Houaiss. Ainda me impressionam os umbigos do biquíni", confessou. Expliquei então o motivo da entrevista: queria que, pela primeira vez, ele comentasse algo sobre o advento da internet e das redes sociais. "Você é estagiário do Jornal do Brasil? O brasileiro é um internauta nato. Mas vamos logo que às três da madrugada começa a doer minha úlcera. Eu a adulo com pires de leite. Lambe como uma gata", explicou.

Quis começar então com uma pergunta mais genérica: que tal lhe parecia a internet? "Olha, a internet tem todos os defeitos da vida real, e mais um: é virtual". Lembrei a ele então da possibilidade de interação social que a internet oferece, mas ele logo me interrompeu: "Aí eu faço a mesma pergunta que Sartre fez quando veio ao Brasil: onde estão os negros?". Enquanto eu pensava se isso era ou não uma pergunta retórica, Nelson explicou melhor o seu raciocínio: "Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu na internet a própria superioridade numérica. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz. Ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote. E sem sair da internet. Os idiotas perderam a modéstia. São os que mais berram", acusou.

Perguntei se ao menos a internet não poderia contribuir com a consciência política do país, mas Nelson desdenhou dessa possibilidade: "Nenhum perigo ameaça os internautas. Quando falam de política na rede, eles têm rompantes ferozes. Mas a política está fora da internet, e eles não. Há uma sábia distância entre os heróis da internet e a política. Os nossos internautas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança". Sugeri que talvez houvesse uma certa imaturidade nos comentários na internet, e Nelson logo concordou: "Há por aí nas redes sociais uma promoção da imaturidade como se fosse um sabonete ou um refrigerante. Mas nem se pense que essa idealização da imaturidade começa na internet. Não. Começa em casa".

E o Facebook? Quis saber o que Nelson pensava especificamente sobre essa rede. "No Facebook são publicadas coisas que não se contam nem ao médium depois de morto. Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que aquele que recebe um "curtir". Não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima, e por isso um simples "curtir" já nos gratifica", acredita Nelson. Suas opiniões sobre o twitter não foram melhores. Nelson não simpatiza com a tentativa de limitar o número de caracteres - diz que isso nos transforma em idiotas do objetividade. "O twitter e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro. E o pior é que, pouco a pouco, toda a internet está se transformando em outra idiota da objetividade. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 200 milhões de tuiteiros? Duzentos milhões de impotentes sem sentimento".

Nem mesmo a possibilidade de se relacionar com personalidades no twitter é vista com bons olhos por Nelson: "Há admirações nobilíssimas, e outras abjetas. No twitter eu só vejo admirações abjetas". O YouTube também não escapou das suas críticas: "Não há lembrança de outra época tão pornográfica como essa. Mas o problema não começa no YouTube. A internet foi chamada de obscena porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: queriam o quê? Que as câmeras vestissem os nus, calafetassem os umbigos, enfiassem espartilhos nos quadris? Por que ter pudor na internet se não se tem nos bailes funk?", questiona.

Antes de terminar, quis saber se ele concordava que a internet iria substituir meios de comunicação tradicionais como o jornal impresso, mas Nelson foi enfático: "O jornal vive de mortes e ressurreições. Antes da internet, era a televisão. De vez em quando, vem alguém passar o atestado de óbito do jornal. Mas ele continua. O jornal está vivo, o jornal é um cadáver salubérrimo". Logo depois dessa pergunta tivemos que nos despedir - Nelson começava a sentir a sua úlcera vibrando como uma víbora. Ainda era a madrugada do seu aniversário. Senti um tom de nostalgia e uma certa mágoa quando observou: "Durante anos, os casais Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende não faltaram na minha mesa de aniversariante...".

E então partiu, deixando-me a sós com a cabra vadia. Lá estava ela, comendo capim - ou, por outra: comendo a paisagem. No alto, uma lua de sangue e, ao fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes.