Conversas de Cozinha

Cheguei a sua casa de surpresa, como de costume, dessa vez precisando de coturnos para usar na minha peça. Toquei o interfone duas vezes, sem saber ao certo quem poderia atender, ou se iriam atender, mas atenderam. A voz masculina já me era familiar, mas ainda sim me deixou com um tom de dúvida se falava com quem realmente queria.

- Pois não?

- É... Oi, é a Luana.

- Ah, Luana! Só um minuto, já vou descer.

Ainda não tinha certeza de que falara com quem desejava, aliás, ele tinha um irmão, que pelo visto, me conhecia, então não seria tanta surpresa de que quem descesse fosse o irmão e não ele, mas não acharia mal se fosse o irmão tendo o carinho que tenho por ambos, mas naquele dia precisava falar com Ian. Então, pelo simples fato de ter acertado o número do apartamento, me vi em paz e esperei na sombra, do outro lado da rua, lendo algum texto do qual havia deixado na última matéria do caderno (como de costume).

Pouco tempo se passara até que olhei pra frente e o avistei, era Ian, com certa dificuldade em abrir a porta, me fazendo sinal para ir até lá com uma das mãos enquanto a outra puxava o portão de vidro com dificuldade. Fui até lá, e sorri. Ele fez o mesmo.

Depois de alguns segundos tentando abrir a porta, abriu um sorriso novamente e me deu aquele abraço que acolhe a alma e te faz querer ficar, que não precisa de palavras pra dizer “Que surpresa boa te ver aqui”, e era costumeiro sentir esse abraço quando o encontrava, aliás... Não me lembro de ter outro tipo de abraço com ele. Poucas foram às vezes em que nos encontramos tendo combinado algo, na maioria das vezes foi assim, sem planejar, e sinceramente, prefiro assim.

- Me desculpe a demora, eu estava pelado.

- Ah, tudo bem. – Eu ri. – Pois então, preciso de sua ajuda.

- Mesmo? No que posso te ajudar?

- Se lembra daqueles coturnos que você me disse que poderia me emprestar?

- Ah, sim! Claro... A peça. Vai precisar?

- Sim.

- Então vamos subir, vou pegar pra você. Estou sozinho em casa.

Subimos até o segundo andar e entramos no apartamento, ele começou a arrumar tudo e a se desculpar pela bagunça, e eu tentei convencê-lo de que eu realmente não me importava com aquilo, mas ele não se contentava e continuava a jogar uma coisa pra lá, e outra pra cá. Logo, terminou e começou a me mostrar alguns presentes, dentre eles, estava um que eu havia lhe dado há pouco tempo, que havia deixado com seu irmão, um presente de Bruxelas que achei que ele iria gostar, uma pequena estátua do Manneken Pis.

Ele me abraçou novamente.

- Ah! Obrigado, obrigado mesmo. Eu gostei muito do menininho.

Eu sorri e retribui o abraço.

Ele se lembrou do real motivo de eu estar ali e deu um salto em busca dos coturnos se desculpando novamente, mas mal sabia ele que eu estava tão entretida em seus presentes, que era provável eu passar a tarde inteira ali vendo aquelas pequenas lembranças de amigos que eu nem se quer conheço e ir embora sem me lembrar de que eu precisava de algo, quando havia tanto papo pra jogar fora com uma pessoa daquelas.

- Aqui estão os coturnos, espero que ajude. Se quiser, eu também tenho perucas, ou... Não sei, qualquer coisa, eu tento te ajudar.

- Hoje não preciso de perucas, mas preciso de uma roupa de cachorro.

- Infelizmente, hoje não tenho. – Ele riu. – Bem, você já almoçou?

- Sim, eu comi um lanche. Estou satisfeita.

- Mas não quer almoçar? Eu ainda não almocei, vou fazer comida agora.

- Não se preocupe comigo.

Fomos à cozinha e me sentei no canto, enquanto ele, meio atrapalhado começava a esquentar a água para o macarrão.

- Mas me conte, Lu... Ops, eu posso te chamar de Lu?

- Claro que pode, acho até melhor. Te contar o que?

- Me conte sobre você, como anda sua vida, o que tem feito e tudo mais.

- Acho que as coisas mudaram bastante, entrei em alguns rolos que eu mesma não entendo bem, viajei para o exterior e isso mudou um pouco minha percepção de mundo, deixei a religião.

- Mesmo? Nossa, me conte melhor sobre isso. – Ele pareceu surpreso e sentou-se à mesa comigo com alhos e cebolas.

Contei tudo o que se passava e até um pouco mais, o que não era de costume, o que eu não conseguia fazer nem com um de meus melhores amigos, mas tudo ali parecia um conjunto tão aconchegante e simples que me fez dizer o que guardei pra mim; O barulho da faca cortando a cebola sobre o prato, o cabelo preso e longo de Ian, os parênteses que ele abria entre minhas falas para dizer sobre suas experiências de vida, mas logo se desculpava por falar tanto e dizia que estava aprendendo a controlar sua língua, a água borbulhando panela a baixo...

- Caralho! – Ele correu e desligou o fogão. – Me desculpe, eu estava entretido na nossa conversa, mas Lu... E você, acha que mudei?

- Não – A resposta foi imediata. Eu sorri.

- Nossa, mesmo? – Ele retribuiu o sorriso. – Vamos, pelo menos fisicamente eu mudei, sei que estou mais feio.

- Sim, fisicamente você mudou bastante, pode ser que seu modo de pensar também tenha mudado, mas eu vejo em você o mesmo Ian que via há alguns anos atrás, pra mim, você continua o mesmo.

- Poxa, obrigado. – Voltando a se sentar ao meu lado, ele parou, olhou para mim e sorriu, parecendo surpreso e satisfeito com a resposta. – Isso é bom.

- E você? Acha que mudei?

- Sim, sim... Está mais bonita. E parece que muita coisa mudou em sua vida também. Aliás, me fale mais sobre você, vamos.

- Eu comecei a escrever.

- Mesmo?

- Sim, mas eu falo sobre coisas bobas.

- Gostaria de ouvir alguma coisa sua. Eu também escrevo, mas não são coisas boas, a maioria eu escrevo no celular, quando a ideia ainda está fresca. Acho que tenho algum texto aqui, quer ouvir?

- Claro, por favor!

Ele recitou um texto doce e ritmado, que me fez sair do planeta por alguns minutos e entrar no planeta utópico de sua autoria.

- Fim.

- Ual... Eu gostei, mesmo.

- Acho que é o melhor que tenho. Bem, mas vamos, agora quero ouvir algo seu.

- Eu não tenho nada aqui agora, mas acho que me lembro de uma poesia minha, a única que consegui decorar.

Eu recitei “De onde vem?” olhando para a janela, meio trêmula, meio tímida, mas recitei. Terminei e ele sorriu.

- Eu gostei muito, o ritmo, a sonoridade, as rimas. Tudo muito bom. Uma de minhas amigas lançou um livro de poesias, mas acredite... Eu prefiro o que acabou de recitar.

Fiquei surpresa o suficiente para olhar fixamente para ele com um olhar espantado e sussurrar um “Obrigada”.

Indicações de poemas, desabafos, histórias, conquistas, vontades, e de repente aquela cozinha pareceu pequena demais para nós dois. E eu só queria ficar ali por mais algumas horas enquanto Ian dizia tudo de uma forma que me deixava extasiada com a forma que ele sabia usar as palavras e fazê-las parecerem as corretas a ouvir naquele momento, notei que estava atrasada, mas não notei de início, o esperei terminar de comer sua macarronada (que parecia boa).

- Eu preciso ir.

- Ah, eu tenho que sair também, vou andando com você até aonde puder. Pode ser?

- Claro.

Fui seguindo meu caminho e ele me acompanhava, ainda falando, falando, falando, semelhante ao Ian de 2010 com cabelos mais curtos, e eu me perguntava “Por que diabos eu não procuro falar mais com uma das melhores pessoas que já conheci?”, e ainda não encontrei resposta.

Chegou-se o ponto que precisávamos nos separar, ele me olhou e sorriu, me puxando para um abraço que dessa vez dizia “Te vejo em mais uma surpresa”, eu retribuí.

- Apareça mais vezes, Luana.

- Pode deixar. Foi bom te ver.

- É Sempre bom te ver.

Lu A
Enviado por Lu A em 23/08/2012
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3845652
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