Minha anja

Resolvi que não quero mais saber de anjos! Definitivamente não quero mais saber deles!

Que tal as anjas? Eu nunca ouvi essa palavra da boca de qualquer mortal. Mas elas tem que existir no plano metafórico, no inconsciente. Porque, na realidade, elas existem.

Foi hoje que decidi: na aula de artes cerâmicas, a proposta era a organização de uma exposição para os tempos de Natal. E o professor sugeriu que poderíamos fazer as esculturas relacionadas à data mais esperada e respeitada pela cristandade. Quem sabe, dizia ele, vocês podem começar por um anjo.

Comecei a matutar sobre a figura doce, bochechuda, rosada, exalando meiguice e quietude. Criatura que encanta crianças e, nos seus quartos, sempre tem alguma imagem - é a do anjo da guarda, que sempre deve estar ao lado dos pequenos, garantindo um bom sono, calma e maciez na ainda curta existência.

Mas uma anja– pensei – tem mais consistência de alma , mais “sustância”, mais empatia e compaixão para com os simples mortais. A anja, no seu silêncio gorducho , sabe que as dores passam, os dissabores arrumam um lugar para sair pelo ralo do coração. A grande questão é n ã o deixar esse ralo entupir. Mas se entope, a anja sabe oferecer, com singeleza, um vidro cheio de Diabo Verde para que a passagem se desobstrua.

Uma anja é eterna porque sabe sempre onde dói e sabe também dar um beijinho bem ali no lugar da pancada na cabeça ... nas milhares de pancadas que levamos na existência , e depois dizer que “isso passa”, enxugando calmamente as nossas lágrimas amargas.

Anja chega mais perto de Deus, entra pela porta da cozinha, passando antes por meio das flores de um jardim primaveril, e faz um café bem quente com pão de queijo celestial e conversam com um misto de satisfação e cuidado com os seus filhos e fazem tricô juntas porque Deus é mãe. Mas não me venha com essa conversa de que Deus é Pai, porque não é não. E a anja conta para Deusa sobre como estão os seus cuidados com as criaturas. E pede para a criação de um mega laboratório com Mertiolate para passar nas feridas da alma. Passa nas nossas feridas e sopra depois... e mais uma vez diz:”isso passa”.

Anja faz bolo de abacaxi. Sorri confiante e meiga quando a gente está perdida nos descaminhos da vida. Estimula a coragem e faz deixar para lá os erros da história. Anja faz fogaccia para a gente comer quentinho num sábado à noite quando não está com muita vontade de fazer pizza. Anja pinta telas numa riqueza exuberante de cores. Ajuda a gente a estudar, a crescer, ser mais. Inventa algumas estórias engraçadas também. Anja ensina o respeito ao próximo e aos pobres. Ajuda a criar os filhos da gente e dá café com leite de canudinho na cama quando o neto quer imitar a bisa. Anja vai como co-pilota para a gente amaciar carta de motorista. Vai junto e partilha o medo do trânsito de uma São Paulo sempre enlouquecida e impaciente para com os iniciantes no volante. Ajuda a colocar o adesivo no carro quando a gente entra na faculdade. E compra queijo meia-cura em momentos difíceis. Anja dá anel de ouro depois de algumas economias propositais. Oferece Nescau “pelandinho” quando o frio é de rachar . Ouve em silêncio as nossas angústias e depois diz um ”é”chateado e pensativo sobre os destinos das situações. Anja confia na gente e até pergunta alguma coisa para uma resposta supostamente útil. Faz piquenique junto e leva empadas , bolo de cenoura coberto com chocolate e outras comidas gostosas. E ensina a fazer chocolate e manda prá casa da gente – via SEDEX - uma quantidade enorme de bombons de variados sabores. Anja sofre junto com o filho as frustrações... mas o filho é a compensação das suas misérias.

Então eu resolvi esculpir uma anja. Amassei o barro como se amassa um pão. Com cuidado, fui dando uma forma esbelta, recriando o meu espaço emocional, ao mesmo tempo pensando nas minhas amargas perdas insubstituíveis e inconfessáveis. Com pressa, fui colocando seios. Rostinho redondo, cabelos fininhos, asas acolhedoras, mãos juntinhas para depois poderem se abrir calma e abraçar quente a humanidade que necessita com urgência do feminino nas almas e no eterno.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 03/09/2012
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