A cegueira branca

Vésperas de eleições municipais. A cidade ferve em meio ao caldeirão político, agora instalado e logo depois que este caldeirão esfriar será servido o prato principal. As redes de televisões expõem os embates entre os candidatos, os correligionários saem na defesa de seu protetor, do mentor da promessa de uma política séria e honesta.

Chegou o grande dia! Santinhos e banners fazem parte a certo tempo da paisagem daquela cidadela que de tão antiga os políticos já seguem a cronologia desde sua fundação. Mas uma coisa muito estranha acontecerá naquele fatídico dia. Uma cegueira, mas não seria bem uma cegueira visual, e sim uma cegueira moral, cívica, enfim uma cegueira mental abateu-se nos descendentes de bravos guerreiros conquistadores de sertões país a fora. A votação transcorreu durante o dia até perto do crepúsculo do sol. Várias pessoas chegaram a suas residências um pouco atordoadas, mas nenhuma grande preocupação foi dada a tal da “cegueira”.

O prefeito, filho de uma vasta geração de coronéis políticos daquela aldeia foi eleito. A cidade já tinha o seu alcaide. Um turbilhão de problemas apontava naquela serra que a cercava. Do alto de seu gabinete o prefeito olhava com as mãos para trás, orgulhoso de seu feito, os prédios e o trânsito que cismava em continuar mais barulhento do que de costume. Na parede ao lado logo teria um quadro com sua foto. Hora de começar a “trabalhar”. A caneta desliava sobre o papel timbrado com o brasão do município.

Anoitece e um novo dia está para nascer. Será um novo dia como todos os outros? Nas casas e apartamentos as pessoas preparavam para mais uma dura rotina de trabalho. Nas TV´s, companheiras dos cidadãos ilustres daquela aldeia onde a lenda conta do índio que bebeu daquela água e nunca mais saiu, começam a noticiar o caos de súbito que tomou conta do sistema de saúde do município. Hospitais e postos de saúde lotados. Pessoas protestavam diante daqueles prédios, a segurança precisava ser reforçada. Veio à cavalaria e a guarda municipal e conseguiram contornar o problema, mas a saúde continuará a ser vítima. Rapidamente repórteres ansiosos por notícias bateram às portas do palácio municipal. O prefeito disse a todos que os problemas eram isolados, logo seriam sanados com certas medidas que ele mesmo assinaria para conter a crise da saúde.

No liminar daquela tarde a caneta percorreu mais uma vez o papel que se encontrava diante dos olhos do prefeito. Ordem dada e assim mais um dia morreu naquela cidade onde a morte começa a listar cada vez mais vidas.

As crianças, futuro e orgulho daquele lugar simpático cercado por serras, na entrada a estátua mostrava aos visitantes o passado de peso daquela gente de valor, começaram a cada vez menos aprender ciências fundamentais para a construção de uma sociedade justa. Mestres das letras cruzaram os braços, bibliotecas espalhadas pela cidade um por uma fecharam suas portas, não se ouvia mais o barulho da sineta, crianças ficavam nas ruas ou em suas residências. Outra vez o batalhão das mídias locais estava à porta do gabinete municipal e mais uma vez o prefeito alegou que os acontecimentos eram momentâneos, logo sua sangria seria estancada e prometeu isto em nome de seu deus. Disse que para o seu deus nada é impossível.

As palavras proferidas acalmaram os mais crentes e enfureceram os mais céticos. A cidade adoecia, seus filhos sem os estudos não almejariam grandes voos. O dia abafado cerrava com o céu nublado e triste. Na manhã seguinte vários templos religiosos encontravam-se no chão. A bela igreja construída no começo do século, com seu estilo neogótico, suas torres já não apontavam para o céu. Havia um rasgo entre o criador e a criatura. Nas várias regiões da cidade acontecia o mesmo. O suntuoso minarete já não fazia parte da paisagem. Entre os prédios havia um espaço vago, triste e confuso, mas os pardais ainda cantavam nos fios dos postes de iluminação. Até aqueles que protestavam contra o caminho errado que religião tomou não sabiam de quem era a culpa. Estávamos sendo castigados pelo divino?

Equipes da defesa civil interditaram todos os templos religiosos, pessoas enfurecidas começaram a tentar achar um culpado pelo o que acontecia em sua cidade. Cidade esta que um dia foi sua.

Rádios e Tv´s noticiavam a onda de violência que tomou a cidade. A cegueira antes momentânea agora se instalou em definitivo naquele lugar. O culpado escondia-se em seu gabinete, a clava da justiça não era forte. Um movimento começou a surgir, um movimento de resgaste de valores, conceitos, justiça e paz. Ruas eram ocupadas por pessoas insatisfeitas com o rumo que sua cidade tomou. Gritos eram ouvidos cada vez mais por todas as regiões. O sinal da velha fábrica ditava o ritmo dos protestos. O palácio municipal era ocupado, a polícia não guarnecia mais o ladrão que se fechava contra seus próprios eleitores. Invasão! No canto de seu gabinete, abatido e tremendo como um pinto recém-nascido, a caneta foi tirada de sua mão, as algemas cerravam no braço do chefe do munícipio. Uma nova eleição foi feita, a cegueira foi curada, havia cicatrizes, mas elas lembravam o seus doentes do passado de dor.

Prefeito escolhido pela voz da moralidade e justiça. Na parede do gabinete do novo administrador municipal o quadro do antigo dono não foi esquecido. Logo abaixo de sua foto estava escrito: “Nunca esqueça”. Vassouras limparam todo paço municipal. A cidade voltou a ter a rotina, não perfeita como todos nós queremos, mas pelo menos um lugar que podemos dizer com orgulho: “Eu amo ser daqui!”.

Chronus
Enviado por Chronus em 08/09/2012
Código do texto: T3871396
Classificação de conteúdo: seguro