Na casa Fretin

Desde bem jovem a Casa Fretin ocupava o meu imaginário. Eu não sabia ler esse nome estranho, até um dia em que ouvi o meu pai pronunciando esse nome especial e difícil para mim. Todas as vezes em que eu caminhava pela rua São Bento em direção à Botica Ao Veado de Ouro, eu olhava com encanto para aquela construção do século XIX.

-“O que será que tem lá dentro?”, eu ficava a cismar. Entendia que ali só existiam coisas especiais para pessoas também especiais. Eu era apenas uma garota humilde e nem tinha para quem eu perguntar. Ou melhor, eu tinha vergonha de perguntar o que, supostamente, as pessoas já sabiam.

Mas tarde eu descobri: fundada, em 1895, a casa Fretin ficava no número 20 da rua São Bento. Foi com o progresso da cidade e o consequente aumento das vendas que o fundador, o francês Louis Fretin, resolveu mudar a sede para a recém-construída Praça do Patriarca.

Só aí que ocorreu a diversificação dos produtos. Nos primeiros anos de funcionamento, a Casa vendia apenas relógios, em sua maioria, importados. Mas foi na Praça do Patriarca que a Casa passou a ampliar o seu comércio, oferecendo óculos, cosméticos, material cirúrgico e novidades trazidas da Europa.

Os barões do café tinham a Casa Fretin como referência do comércio de produtos de primeira linha, até que, em 1914, eclodiu a Primeira Guerra Mundial e as importações se tornaram praticamente impossíveis.

No final do século XIX, São Paulo se destacava pela grande produção do café, provocando a grande entrada de dinheiro, proporcionado progresso e estabilidade no II Reinado. Tempos de fim da escravidão, da entrada maciça de imigrantes, de modernização econômica, grande produção cultural e o centro da cidade de São Paulo esbanjava glamour e ostentação.

Início dos anos 80 e eu resolvi comprar uma bengala para a minha avó. Ela, que havia nascido apenas 5 anos após a fundação da Casa Fretin, merecia alguma coisa dali, daquele espaço histórico, requintado, com milhões de histórias para serem conhecidas e detalhadas, valorizando pensamentos e sentimentos.

Prestes a me casar, eu ia ao centro com pouco mais de frequência para comprar algumas roupas e calçados. Invariavelmente eu passava pela São Bento, respirava longamente aquela rua que nos leva à Igreja do mesmo nome, fundada após um incêndio proposital numa aldeia indígena para se colocar ali um valor religioso branco de um santo europeu.

Eu olhava muito, com olhos vivos num passado que não vivi, mas com a alegria de estar presente, de alguma forma, num tempo de esplendor, de efervescência numa cidade ainda nova em termos de progresso e de inovações. E também me sentia viva e presente porque eu já trabalhava e fiz questão de comprar a bengala com parte do meu salário de professora de História e isso, para mim, era muito significativo naquele tempo. Feliz, de cabeços cacheados pela permanente, já de preparação para o meu casamento naquele dezembro de 1982, eu comprei a bengala para a minha avó.

Entrei na Casa Fretin com decisão. A minha avó não haveria mais de cair com facilidade. Nem poderia. Ela estaria com o corpo amparado por um pedaço de madeira preparado pelas mãos hábeis de um trabalhador, que teve o privilégio de produzir para que um outro pudesse viver mais equilibrado e sem traumas. Feita com beleza e arte, aquela bengala, que passou a ser da minha avó, representou um pouquinho da história refinada construída com amor e esforço desmedido para o progresso de São Paulo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/09/2012
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