Garota no bar.

Toda descrição de mulher deveria começar pelos olhos.

Ela tinha os cabelos de graúna, mas as mechas e pontas claras esbranquiçadas por algum descolorante cobriam as costas como uma cascata. Pouco tecido se via debaixo do rio de cachos, talvez usasse uma blusa lilás, ou não usasse blusa, mal dava pra saber. O jeans rente, o que algumas beatas julgariam como de meretriz, na verdade não era tão vulgar, mas convidativo. Descendo ainda mais, os olhos esfomeados alçaram o calcanhar direito, onde sepultada na pele jazia uma flecha em tatuagem.

Oferecer um drinque? Clichê. Coisa de cinema. Menos romance e mais filme pornô, cogitou consigo mesmo o espectador. Em seguida, tocou a aba do chapéu com o indicador e o polegar em pincha, ajeitando 1,7 centímetros para esquerda. Terminou de adentrar ao bar, fitou algumas mesas vazias, desviou do garçom inexperiente num ato de reflexo e sentou-se. Ajeitou então o chapéu, curiosamente 1,7 centímetros, desta vez para a direita.

Manteve a vista na garota do balcão. Ele a estudava, como um assassino percebe suas vítimas, como um vizinho curioso espia a janela do quarto, reparou no pedido dela, uma taça com rum de maça verde. Ele era capaz de reconhecer qualquer bebida, é a única coisa que um homem aprende quando tenta entender as mulheres, beber. Para cada mulher um porre.

Pensou em tantas coisas diferentes de uma vez só: no emprego, na ex-namorada, na faculdade, alguns assuntos importantes outros nem tanto, pensou, pensou... Enquanto ela servia de descanso para os olhos desanimados dele, que piscaram inesperadamente. Garçom? (chamou) - Um isqueiro? E o mesmo o repreendeu alegando ser preciso deixar o bar para fumar. Só retrucou: - Um chope.

O primeiro gole, “meiou” o copo. Começou a imaginar como ela era. Como seriam os olhos? Qual o formato da boca? Tal harmonia, tais linhas, merecia a face de um anjo, ou anja. Aquilo de um modo passou a incomodar seu espírito, feito o cisco encontra a retina. Empurrou a cadeira para trás num ranger de madeira, apoiou os braços na mesa, deu impulso pra se erguer, quando repentinamente as algumas amigas se aproximaram dela. Cessou o movimento, sentou-se mais uma vez.

As moças pareciam voltar do banheiro, uma garota que não vai ao sanitário com as outras? (paralisou estupefato), nunca havia visto tal criatura.

Ao reacordar do transe, voltou a observar. Uma delas combinava traços orientais e negros, lembrou a citação de um amigo: “No Brasil, terra das misturas, isso só pode significar dois extremos: algo terrivelmente feio ou uma beldade única.” E ela não fugia a regra, era linda, constatou.

A outra tinha olhos claros. Ruiva, tingida, com o corte de cabelo extremamente falso. O que grotescamente pertencia a uma harmonia perfeita com a pele pálida, a estatura mediana e os seios fartos. Também possuía beleza. Recordou outro dizer: “A beleza se baseia puramente na simetria do corpo” com o qual não concordava, a seu ver, a feiura também há de ser simétrica.

Teorizou mais uma vez: “mulheres bonitas normalmente formam sempre uma cambada! (Coletivo de gatos; neste caso gatas).” O incomodo aumentou, os pensamentos que antes eram vagantes agora voltaram a idealizar aquela mulher, delineando com o subjetivo do pensamento a feição da misteriosa. Ele se sentia como um noivo ao altar, sem conhecer a amada, vislumbrando ela entrar na igreja ainda com um turvo véu de cetim sobre o rosto. Agoniava.

Que segredos ela escondia? Ele quis ir até ela, mas o que perguntar? As horas? Tolice! (que se dane o que eu irei dizer, desde que meu olhar possa calar minha inquietação) Pensou de novo. Tramou uma ida ao banheiro, de lá o enigma se revalaria. Foi então que outro ”porém” se anteveio. E se ela fosse feia, horrorosa, medonha. Estragar a imagem perfeita que idealizara dela? Seria uma decepção. Um trauma. (Homessa homem, deixe de frescuras!) Repreendeu a si mesmo.

Começou a caminhar num zigue- zague dentre mesas e cadeiras, quando ela também se levantou e se adiantou ao caixa. Ele então mudou o trajeto que outrora seguia para o banheiro. (E se ela saísse enquanto ele estivesse lá?) cogitou. Numa atitude das quais não se pensa para tomar foi direto à fila e parou atrás dela.

Agora estava a menos de um passo de acabar com aquela tormenta. A fileira de pessoas era longa, erroneamente voltou a raciocinar. A única atitude que o pusera próximo dela fora um ato sem lógica. E agora voltara a meticulosamente planejar o próximo ato: (vou tocar seus ombros ela há de se virar, então depois me desculpo, posso dizer que a confundi com uma amiga).

A medida que suas estratégias mirabolantes lhe tomavam a mente o número de pessoas que os afastava do caixa diminuía. Foi então que chegou a uma resposta. Um plano perfeito! Nada constrangedor, e que daria fim ao dilema do estranho. Era óbvio, como não pensara naquilo antes? Chegava a beirar o ridículo. (Assim que ela pagar a conta, será obrigada a se virar e se dirigir a única saída do bar! Acabaria ali seu martírio) cochichou em silêncio.

Foi então que chegou a vez dela, percebia o próprio batimento do coração em cada dobra do corpo. O frio típico da ansiedade se alastrou, nunca com tanta voracidade. Pronto! Ela tinha recebido o troco. A cachoeira de fios então balançou, o pescoço começou a virar primeiro, uma corrente de ar soprou vagarosa, o corpo acompanhou o movimento que colocou eles finalmente diante um do outro para seu alento.

Aberração! Deus não dera a ela face, expressão alguma lhe pertencia. Um ser isento de feição. Aparência incapaz de ser compreendida, nenhum adjetivo podia denominá-la, tal aspecto era desprovido de explicação cabível ao vocabulário humano.

Aos poucos a visão dele fora tomada por um clarão de brilho intenso, e tudo se tornara alvo por instantes. Gradativamente as bordas esfumaçadas do olhar ganhavam a escuridão eterna, até que o breu tomou para sí e por completo aqueles olhos curiosos numa cegueira súbita.