O sorriso das flores

Quando eu tinha doze anos, meu maior prazer era ler. Vivia enfurnado dentro de casa, devorando um livro atrás do outro.

Eu cursava a sexta série do Ensino Fundamental. Meus pais tinham uma situação financeira razoável e faziam questão que eu ficasse por conta de estudar. O colégio era caro, mas péssimo. Para ser aprovado, era só decorar a matéria que o professor passava no quadro e os questionários que ele mesmo respondia, o que me tomava pouco tempo, pois fazia isso entre cinco e seis da manhã, só em dias de prova.

Assim eu tinha todas as tardes e noites livres para ler. Chegava do colégio por volta de meio-dia, almoçava, escovava os dentes e ia para a sala, onde me acomodava no sofá com um livro, quase sempre um romance policial, mas também, de vez em quando, contos de terror, principalmente de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, que eu lia e relia sempre com enorme prazer.

Uma tarde, devorando Convite para um homicídio, de Agatha Christie, levantei-me do sofá e fui até a janela, lendo em voz alta o último capítulo, onde se encontrava a solução do mistério. Terminei o livro e fiquei lá, pensando na trama, nos personagens, nas inúmeras peças daquele complexo quebra-cabeça, quando de repente vi, no jardim da casa vizinha, bem em frente, um velho que parecia saído de um filme noir americano dos anos 40, magro, de chapéu, enfiado num terno cinza antiquado, cuidando do seu canteiro de flores. Era a primeira vez que eu o via ali, e se não fosse o terno que ele usava, talvez nem o notasse.

Mas lá estava ele, curvado sobre o canteiro, remexendo a terra com cuidado, o rosto sereno, alegre, com um sorriso típico de quem não tem nada com que se preocupar na vida. Ele sorria para as flores, os olhos brilhando como duas pérolas de luz, e elas sorriam para ele também, compartilhando o que, para mim, era sua paz de espírito, a felicidade que ele sentia por estar vivo naquele momento, só para cuidar delas, sem esperar nada do minuto seguinte.

Talvez isso não passe de um delírio, fruto de uma imaginação doentia, pois como meus pais tinham previsto, fiquei louco de tanto ler. Hoje, quando não estou internado, fico em casa sozinho, dia e noite: as pessoas me evitam, me olham de um jeito estranho, por isso prefiro a reclusão; e para retardar a próxima internação, o único remédio é escrever. Escrevo de tudo, poesia, conto, romance, crônica, mas não publico nada, porque ninguém se interessa pelo que escrevo. Já tentei publicar uma vez, mas a indiferença foi tanta, que desisti. Hoje escrevo só para mim.

Mas voltemos ao velho:

No outro dia, a mesma cena se repetiu, e foi assim a semana inteira, sempre no fim da tarde.

Eu o observava da janela. Ele saía da casa pela porta da frente e caminhava lentamente até o jardim. Suas flores eram as mais bonitas e bem cuidadas da vizinhança, o que me espantava, porque seu trabalho era só remexer a terra com uma pá e sorrir, mais nada. Não trazia um regador com água, adubo, nada. Talvez de manhã ele trouxesse alguma coisa, pensei, mas não me preocupei com isso; meu interesse maior não era pelo que ele fazia, mas pela pessoa, pelo homem. Quem era ele? Que idade tinha? Morava sozinho? Era incrível que eu nunca tivesse me dado conta da existência daquele velho, e meus pais também nunca tivessem comentado nada sobre ele.

De repente ele existia e estava ali, de chapéu e terno, todo elegante e feliz, cuidando do seu jardim como se a vida fosse só isso – e para mim era espantoso que ele se sentisse tão bem, tão alegre, sendo já um velho que, pela aparência, devia ter mais de noventa anos, restando-lhe apenas um sopro de vida (que estúpido eu era aos doze anos!).

Uma tarde ele não apareceu. Na outra também não. E foi assim a semana inteira, sem dar o ar da sua graça, o que me deixou preocupado.

No oitavo dia sem vê-lo, pela manhã, dei uma volta ao redor da sua casa. Parecia abandonada. Vidros quebrados, pintura descascando e um cheiro forte de mofo no ar (que parecia vir das beiradas do telhado e das paredes do fundo). As flores do jardim já davam claros sinais de abandono. Não sorriram para mim quando me aproximei delas. Estavam tristes.

Voltei para casa e à noite perguntei aos meus pais se eles conheciam o nosso misterioso vizinho. “Ninguém mora ali há muitos anos”, me disseram, mas não aceitei, disse a eles que tinha um velho morando naquela casa, que todas as tardes ele saía vestindo um terno cinza e ficava mexendo no canteiro de flores, e que as flores gostavam disso, até sorriam para ele. Minha mãe fez uma cara de tristeza que me deu pena (não gosto quando ela fica assim, desamparada), e olhou para o meu pai. Ele a encarou, sorumbático, e em seu rosto cansado via-se claramente a desesperança e a dor que ele sentia, como se naquele momento minha insanidade estivesse plenamente confirmada e uma decisão quanto ao meu futuro tivesse que ser tomada o mais rápido possível.

Mesmo assim eu insisti, continuei falando do velho, do seu rosto plácido e do sorriso de suas flores. Hoje vejo que se eu não tivesse insistido tanto no sorriso das flores, meus pais talvez não tivessem me internado. Parece que isso os perturbou profundamente: era como se o sorriso das flores fosse a única peça que faltava para a composição do quadro da minha loucura.

No dia seguinte fui internado como louco. Essa foi a minha tragédia. De vergonha, meus pais esconderam o fato dos vizinhos, mas como normalmente acontece nesses casos, no hospício onde eu estava havia uma filha da amiga da cunhada de um vizinho nosso, que me viu e comentou com a mãe, que comentou com a cunhada do vizinho, que comentou com o vizinho, e pronto: uma semana depois a vizinhança toda já sabia.

Hoje sei exatamente o que aconteceu comigo. No início deste relato eu disse que fiquei louco de tanto ler. Mentira. Fiquei louco no hospício, por causa dos remédios controlados, das injeções de calmantes e das centenas, talvez milhares de consultas com psicólogos e psiquiatras incompetentes. Antes, o que eu tinha não era nada mais que poesia brotando em mim. Isso mesmo. Poesia. Inspiração poética. O velho não era um fantasma, mas também não existia como os homens normais querem que um velho exista, em carne e osso, assim como as flores que eu via sorrindo para ele também não existiam na realidade. Afinal, o que é a realidade? O que eu via estava dentro de mim – o sorriso das flores, a alegria serena do velho, sua roupa estranha e inadequada para o trabalho no jardim –, e se estava dentro de mim, se eu sentia tudo aquilo, não era real?

Aquela poesia maravilhosa, que nascia em meu espírito de forma inusitada (como num quadro de Dalí), tinha que ser cultivada, não reprimida. O que eu precisava naquele momento não era de psiquiatras nem de remédios, mas de mais poesia, muito mais poesia e liberdade para ver e sentir tudo... na janela da sala, nos livros, no mundo... para que a minha arte desabrochasse e amadurecesse...

A tristeza das flores abandonadas no canteiro do velho foi um aviso para o que viria a seguir. Era o tempo se fechando, minha tragédia se anunciando.

Nunca mais vi flores sorrindo.

Nem estrelas.

Nem nada.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 28/09/2012
Código do texto: T3905604
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