POVO, NO INSS

Povo acordou cedo, bem cedo, para chegar às 8 ao centro da cidade. Morava longe, na periferia, e não tinha dinheiro para gastar com o coletivo. Povo andava na tira, na pindaíba! Tinha quatro filhos pequenos, pagava aluguel e passava aperto com os minguados trocados que ganhava como magarefe, na prefeitura.

A mulher de Povo bem que tentava ajudar, trabalhando em casa de família, mas era pouco. O salário dela mal dava pras coisas miúdas, o pão, o leite, umas frutinhas contadas a dedo, garantindo uma banana, uma laranja, ou uma maçã pra cada um dos moleques, duas vezes por semana. Carne todo dia, nem pensar! Ia remediando com frango abatido, as partes mais baratas, pé, asa, pescoço... Por aí...

Povo precisava pegar um papel. Disseram-lhe que era no INSS. A prefeitura tinha essas amolações. Volta e meia o DP pedia um papel. Coisa que nem Povo, nem ninguém davam notícia do que fosse. Mas se pediam, fazer o quê? O Pereira lhe fazia medo “Arruma esse trem, vai que duma hora pra outra te cortam o pagamento, e aí?”.

Povo chegou com atraso ao INSS... A agência estava lotada. Bem que ali num canto do recinto tinha um cartaz dizendo que a pessoa podia agendar o serviço sem sair de casa. Mas Povo não tinha leitura, não sabia destas coisas. Mal, mal assinava um “Povo José da Silva”, meio entortado, meio capenga, que aprendeu nos meses de escola da roça, quando era menino, antes de ter largar tudo pra ajudar a família. E, além de não saber ler, Povo não tinha telefone, não sabia mexer com aparelhagem nenhuma...

Povo entrou na fila da senha. A moça era um limão! Curta e grossa, cara de quem brigou com o mundo. Sem um brinco, sem um colarzinho, sem um batom na cara encardida. Aquilo era pessoa de trabalhar num lugar daquele? Povo não sabia explicar, mas achou que não tava combinando... Largou pra lá. Senha na mão, ele sentou onde um guarda mandou. Seu número era 35, e ainda estavam no 27. Ainda bem que não tinha vindo com esperanças de sair depressa. Tinha tirado o dia no serviço pra resolver o papel. Ia demorar! Ainda mais que escutou alguém dizer que dois funcionários tinham faltado...

Povo ficava tímido em lugar com muita gente. Queria sumir quando pegava alguém com os olhos nele. A calça surrada, a camisa desbotada de tanto lavar, o sapato quase furando no dedo mindinho, a meia relaxada de tanto uso. E pior, os dentes! Faltavam os quatro da frente. Tinha vergonha quando alguém puxava conversa. Rir? Só tapando a boca com a mão... Dentista era luxo, mas se um dia arrumasse os dentes, queria rir muito com as piadas do Fostino, lá no serviço...

Povo segurava a sacola de carregar “dicumento”. A mulher tinha costurado, com um pontinho que ninguém falava que era de agulha de mão. Ali estavam as carteirinhas, os registros dos meninos, a certidão do casamento, a carteira de trabalho, a vida de todo mundo. Ele era cuidadoso com essa parte. Lembrava do pai sempre falando “um homi é os dicumento que tem”... Senha 35, a maquininha chamou! Povo levou um baita susto! Estava quase dormindo na cadeira. Uma mulher, que não parava de tossir, cutucou “É o senhor! Tão chamando no 2... Vai lá senão eles chamam outro”. Ele se empertigou, puxou a camisa para baixo, passou a mão no cabelo, caminhou meio sem jeito para o balcão...

O atendente perguntou o que Povo queria. Ele respondeu baixinho que era o que estava naquele papelzinho. Olhou para a cara cheia de espinhas do rapaz do outro lado da mesa, pensou “Por que será que ele não caça um remédio?”. Nem teve tempo de pensar mais nada. Indiferente, o moço das espinhas proferiu “Não é aqui que pega isso... É na Receita Federal...”. Inconformado com o que nem sabia o que era, Povo ainda quis dizer alguma coisa, mas a maquininha já chamava o 36... Cabisbaixo, constrangido, ele levantou-se. Sob os olhares da assembleia silenciosa que esperava e esperava, Povo saiu para a rua que estalava ao sol das onze... Bom, e agora? Diabos, onde será que ficava essa tal Receita Federal?