DESINFORMAÇÃO

Comecei a ouvir música clássica aos 18 anos. Eduquei, na prática, o meu ouvido e devo isso a um humilde caixeiro-viajante, chamado Ferreira, um corpulento homem que corria todo este país, carregando uma pesada pasta com mostruário de artigos de armarinho, e morava numa casa de cômodos na rua Cândido Mendes, num quarto exíguo, mas que mantinha limpo como um claustro de mosteiro. Nesse pequeno espaço, mobiliado com simplicidade franciscana, havia duas camas Drago encostadas à parede, um pequeno móvel para guardar o necessário para o café da manhã, uma prancheta de arquiteto (do seu companheiro de quarto, estudante de arquitetura) e o espaço nobre ficava por conta, na época, do melhor equipamento de som e centenas de discos de música clássica.

Ali, num permanente sarau, reuniam-se jovens, como eu, para pintar e ouvir música.

Para a música, o ritual era apagar-se a luz, ouvir a música e, após, o comentário dos presentes. Nós batizamos esse movimento de "Colmeia".

Vim de um tempo em que a música erudita era (não sei porque) chamada de "música de igreja", como se isso fosse pejorativo. Pouca gente a entendia ou aceitava!

Desde esse saudoso tempo, que tenho muito vívido na memória, jamais deixei de admirar a obra dos grandes mestres, a conhecer um pouco de suas vidas, dos dramas, dos amores, das desilusões e das frustrações de cada um. Procurei a literatura de cada obra, o seu tema, sua história e nesse mister fui enormemente ajudado pelo programa "Música para a Juventude", que apresentava a orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo maestro Eleazar de Carvalho, de projeção internacional e pela valorosa Radio MEC, com sua programação variada e muito bem apresentada.

Nesse espetáculo, "Música para a Juventude", para mim maravilhoso, cada obra era explicada pelo regente, cada instrumento identificado com o personagem da história (como nas suites de Tchaikovsky) e, então, quando executada a música, você a entendia com a maior plenitude. Sempre sentia um arrepio quando chegava ao cinema Iris a tempo de ouvir o oboé dar o lá (440 hz) para os músicos começarem a afinar seus instrumentos; era como presenciar uma conversa entre amigos, coloquialmente unidos.

Desfilaram na minha vida as obras de tantos mestres e de cada um guardei, particularmente, diversas composições.

Sempre apreciei os acordes maviosos de Chopin em seus Noturnos; a força marcial de Wagner, em Tanhauser: o romantismo de Brahms, em Rosents; a extrema sensibilidade de Tchaikovsky, em Apenas um Coração Solitário; o brado renovador de Stravinsky, em Sagração da Primavera; a poderosa força de Beethoven,em sua maravilhosa Nona Sinfonia; a candura de Debussy, em Prelúdio a uma catedral submersa; de Vivaldi, nas 4 estações: a alegria saltitante de Strauss, na Valsa do Imperador; a religiosidade de Katelbey, em No jardim do mosteiro; a incrível capacidade criadora e inovadora do nosso Heitor Villa-lobos, em Bachianas Brasileiras e tantos e tantos outros.

Guardei na memória dezenas de obras e, até hoje, fico injuriado quando ouço uma e não consigo identificá-la; forço a mente e cada vez mais a frustração aumenta, até que ou consigo encontrar o arquivo ou (quase sempre) a radio MEC o faz por mim.

Hoje, tenho por costume usar o canal 481 da Sky, que transmite, sem interrupção, a chamada música erudita. Sintonizo-o diariamente e aquela frustração de não reconhecer a obra que está sendo executada só tem aumentado.

Na tela mostrada, que exibe uma porção de detalhes que nada tem a ver com o programa, tenho encontrado coisas assim:

N°1 – Allegro com brio – Leonard Bernstein

N° 3-2 Marcia Funuebre(sic)

N° 4 in B Flat Major – op 60 – Gunter Wand

Op 72 n°1 - dur molto vivace - Rafael Kubelik-Antonin Dvorák

Que obras são essas?

- Bernstein talvez seja o compositor da tal obra, porém Allegro com brio é, tão somente, o andamento de um movimento e, teoricamente, pode pertencer a uma centena de composições.

O obra de Bernstein é mais conhecida por nós pelas composições para teatro, como; On the town - Wonderful town e a famosa West Side Story. Muito embora sua criação clássica seja bastante grande, seu nome está muito mais identificado com sua condição de regente.

- A op 72 n°1 - dur molto vivace pode ser de um Concerto qualquer ....

- Rafael Kubelik é o regente, mas seu nome aparece unido por um hifem ao do Dvorák, conferindo àquele uma co-autoria quase impossível, já que um nasceu em 1841 e o outro em 1914!

Quem é, afinal, o autor?

Para quem está começando a ouvir a bela música, esse procedimento representa total desinformação ,simplesmente não leva a nada.

Se algum eventual leitor desta crônica tiver como sensibilizar a Sky a adotar modelo melhor, ele estará prestando um grande serviço a essa nobre arte.

Sei que a Sky vai se desculpar dizendo que não é ela a responsável pela programação, mas acontece que é o seu nome que veicula as apresentações e, para o grande público, ela é, sim, a responsável pela boa ou má qualidade do programa. E se uma empresa se propõe a divulgar a música clássica, que o faça de forma "molto vivace".

Aquele protetor de tela que é exibido, e fica volteando , só dá a você oportunidade ligeira de ler a descrição da obra em execução. Será que ele poderia portar as informações completas do que está sendo transmitido ? A sugestão que eu dou é a seguinte:

Nome da obra

Movimento

Autor

Orquestra

Solista (quando for o caso)

Regente

É simples, é justo, é lógico.

Comete-se uma barbaridade ao omitir-se o nome do autor, a quem devemos a felicidade de poder ouvir suas maravilhosas criações, que atravessam gerações, que têm o selo da eternidade.

NOTA - Há uma composição intitulada "Le Gran Tango", cujo autor é o festejado Astor Piazzolla, seguidamente, apresentada e que nomina Chaves & Ratcheva como prováveis autores. Só que Chaves é primeiro violinista e há dois Ratcheva. Como a obra é para piano e violino, deduz-se que Ratcheva seja a Irina, pois o outro é violista e, portanto, devem ser os intérpretes (que confusão, hein?).

Essa composição, para mim, tem um notável efeito sonífero e ainda não pude ouví-la até o fim.

Gosto não se discute!

Mas isso é outra conversa.

(não deixe de ler a inspirada poetisa Sonia Lodiferle)

 

paulo rego
Enviado por paulo rego em 10/10/2012
Código do texto: T3925349
Classificação de conteúdo: seguro