Caso do criado-mudo

Eu tinha, quando criança, uma dificuldade em compreender o porque desse nome para um pequeno móvel à margem da cabeceira da cama. Na verdade, eu achava engraçado dizer que o móvel tinha uma função específica: ficar ali, obviamente parado, pronto a oferecer supostos cuidados e que ele não falava. Mas é óbvio que móvel não fala... mas existia o tal do criado-mudo.

Eu não nutria a menor simpatia por esse tipo de mobiliário. Pode ser por causa do seu primeiro nome: criado. Eu nunca quis uma pessoa se dispondo total e silenciosamente para mim, para ficar me servindo, me atendendo como se eu fosse uma pessoa inútil. Com as minhas mãos eu ia buscando as coisas necessárias para a minha vida. E sempre foi assim, por determinação, por gosto, por consciência. As pernas sempre me ajudaram a ir ao encontro com decisão. Eu seria a responsável pela minha história e não precisaria, portanto, de criados.

Quando eu me casei, mandamos fazer a cama e ganhamos o armário, mas sem criado, é evidente. Eu depositava os inseparáveis óculos e relógio no chão bem ao meu lado e assim , com naturalidade e uma simplicidade de poucos, eu ia tocando a minha existência.

Em meados dos anos 70, mudamos do nosso modesto sobrado no bairro operário do Cambuci, em São Paulo, para um apartamento enorme. Um duplex, chic no úrtimo para aquele tempo e para as nossas circunstâncias. Eu ainda era adolescente, vivia na dependência dos pais e eles mandaram fazer todos os móveis para a nova moradia com imensa satisfação. Não teve jeito: para o meu quarto, que eu partilhava com a minha irmã, veio o tal do criado-mudo. E era tudo muito complicado para mim, naquela juventude que tentava a ousadia, imaginar, colorir, sorrir e ter, ao mesmo tempo, que compreender a realidade do meu pai: tudo no tradicional, no rigor da sisudez, carpete cinza forrando todo o apartamento, móveis de cerejeira , o que, na verdade, é muito bonito, mas tradicional demais para uma jovem que gostava de vida e primavera.

Sempre pensei na condição do meu pai. Nascido no limiar dos anos 30, nos tempos do fim da República do Café-com-leite e início dos tempos de Getúlio no poder, era neto de portugueses. De uma história extremamente dura, a vida teimou em jamais lhe sorrir. E eu ficava pensando –e ainda fico - no absurdo que foi a sua construção de vida. Parece que os tempos nefastos da inquisição vivida pelos antepassados em Portugal não haviam sido devidamente enterrados. Ah! Maldita Inquisição, também conhecida como Santo Ofício... tempos de queimação na fogueira para os hereges, as bruxas, os questionadores do poder autoritário da Igreja. E que herança maldita deixou por gerações sem conta... como medo da morte, gravidade extrema do pecado individual, necessidade de castigo eterno...

Aquela alma portuguesa do meu pai era pautada na obediência às tradições, ao não questionamento, à negativa de qualquer tipo de inovação. A valorização da dor, das perdas, da tristeza e das memórias amargas era inenarrável. Gostava da expressão “catolicismo fervoroso” mas não se dedicava à igreja e achava que padre era necessariamente uma pessoa de bem. Não permitia liberdade às filhas , nem de rir alto. Elas deveriam falar baixo, construir uma vida cheia de moderação, recato, economia e subserviência. O filho tinha todas as liberdades e a chave de casa da porta principal para chegar a qualquer hora e podia falar alto sim.

Eu acabei ficando com um criado-mudo daqueles tempos . Nem sei qual a razão. Há vários anos fiz nele uma pintura mais alegre, despojada: apliquei-lhe uma pátina azul clara para o quarto do meu filho ainda criança.

Conservo o móvel. Hoje ele está no quarto de hóspedes. Resolvi me impor a ele passadas quase quatro décadas. Um novo significado longe daqueles tempos tão sombrios, das marcas amargas do desemprego, das doenças , da ditadura e dos tempos em que tudo era pecado. Mas quarenta anos atrás era também a feliz época da reação, da contracultura, do “é proibido proibir”, ainda com os respingos do maio francês, do feminismo e da sociedade alternativa. Resolvi, então, dar uma nova feição ao móvel que tinha o incrível cheiro de um passado agonizante, aterrador, sem cor e nenhum perfume de lavanda.

Primeiro uma limpeza e a constatação de que o mesmo está muito surrado pelas tantas mudanças . Uma pintura branca, uma demão, outra, outra. Mas no tampo eu resolvi realçar. Sobre o fundo branco, algumas nuances pretas e apliquei um mosaico com vidros grossos de todos os tamanhos. As nuances provocaram uma lembrança da calçada de Copacabana, e muitos dos pedaços de vidros foram pintados com cores e tonalidades variadas: verde, vinho, azul, amarelo, roxo... as cores se sobressaindo ao tempo, alegremente, esbanjando vida, pulando qual uma criança diante da surpresa de um dia de praia em Santos, cobrindo aquela madeira originariamente escura e repleta de negações da vontade. Um móvel escuro sobre um carpete cinza... nunca mais. Agora é branco, com vidro, com cor, com a satisfação da busca da plenitude, da felicidade de quem usou as mãos para buscar e as pernas para caminhar e descobrir o mundo possível, mas sem que um criado, mudo ou não, estivesse pronto para me atender.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 24/11/2012
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