As morenas
 
Quando vieram morar no bairro já eram mais de dez. Não sei ao certo. Talvez onze ou doze. Filhos, fora o casal.
 
Alugaram uma casa de madeira de fundos, com acesso por um estreito corredor de piso cimentado e portão de ripas. A casa não era tão grande, por isso não tenho ideia de como abrigava tanta gente.
 
Mais do que a quantidade de filhos, incomum mesmo para aquela época, chamava a atenção o número de meninas e a beleza delas. Na prole toda havia apenas dois guris.

Eram de todas as idades. Um de colo, outro começando a andar. Alguns na escola, outros já trabalhando. Bebês, crianças, adolescentes, adultos. E todos tinham o nome iniciando com a letra M: Marinês, Marisa, Marina, Marinaldo, Marilene etc.
 
Renda familiar modesta. Ele, motorista de um órgão público federal e ela, dona de casa. Lembro-me da Kombi bege que ele dirigia com as inscrições da instituição em preto nas laterais, e que usava para ir almoçar em casa. E da mulher no portão, sempre grávida e com um pequeno no colo. Outro pregado na saia. Vigiava a turma brincando no gramado do lado de fora.
 
A cor era de um padrão só. Morenos, bem menos do que mulatos. Cabelos lisos, levemente ondulados. As meninas, de adolescentes para cima, eram lindas, simplesmente. Fôrma boa, certamente guardada em segredo junto com a fórmula. A Marilene, com seus onze ou doze anos, despertava a libido da molecada da mesma faixa etária, roubando-nos o sono e o sossego. Quem não pensaria nela, tão formosa e precoce?
 
Vieram do Interior de Santa Catarina. No entanto, trouxeram costumes mais liberais que os nossos. As meninas do bairro ainda usavam vestidos até os joelhos. A Marilene vestia minúsculos shortinhos. Visual de coxa de menina-moça a céu aberto, para nós guris meio caipiras do lugar, era novidade. Quando a moreninha virava cambalhotas na rua, ficávamos com os nervos à flor da pele. Estado de choque. Mas quem nos julgaria pelos maus ou bons pensamentos? Em nome das coxinhas morenas e roliças da Marilene, sem embargo merecíamos mil anos de perdão.
 
Um dia recebi uma reprimenda por tabela de uma das irmãs mais crescidas. Meu amigo Elias era caído demais pela Marilene. Sonhava com ela dia e noite. Andava atrapalhando-se nos cultos matinais de domingo da Assembleia de Deus, em cuja banda ele tocava bombardino. Não conseguia mais se concentrar nos dobrados dedicados ao Senhor. Apertava os pistões do instrumento pensando que dedilhava as coxas da Marilene. Passou a errar as notas. Depois deu para dirigir gracejos pueris à menina. Nada abusivo. Mas ela queixou-se à irmã, que veio tirar satisfações. Estávamos, o Elias e eu, defronte a casa dele. A moça atravessou a rua e veio de dedo em riste:
 
- Parem vocês de mexer com a Marilene...
 
Sobrou para mim, pois ela foi imperativa no plural. Logo eu que era tão quietinho e pacato. Meu único pecado consistia em devorar a Marilene com os olhos de dia, silenciosamente, e de noite permitir que ela frequentasse os meus sonhos.
 
O Elias absorveu a esfrega e aquietou-se. Parou de importunar a menina com os inocentes elogios. Também perdeu qualquer vestígio de esperança sem, entretanto, conseguir afastá-la dos seus pensamentos. Só obteve o antídoto para o amor adolescente não correspondido quando mudou para um bairro distante. No começo, toda vez que eu o visitava, perguntava por ela. Com o tempo foi esquecendo, até que não perguntou mais, encantado, segundo ele, por uma dentuça da sua igreja. Confessou que apreciava as moças com arcada dentária proeminente.
 
Liberto então de possível confronto com o nono mandamento, tentei me aproximar da Marilene através da Neide. Não colou. Primeiro, porque ela era soberba, sabendo-se gostosa. Fechava a guarda. Em segundo lugar, a Neide não estava propensa a facilitar as coisas porque gostava de mim - confidenciou isso ao Tato. Então as peças não se encaixavam. A Neide, que eu não queria, querendo-me; eu querendo a Marilene, que não me queria, e ela, por sua vez, querendo a não sei quem, se é que queria alguém.
 
Penso que sustentar família tão numerosa com dignidade não devia ser nada fácil. Uma vez, quando eu já trabalhava na carpintaria do meu pai, a filha mais velha, bonita como uma miss, pediu-me dinheiro emprestado para pagar a conta de luz vencida e na iminência do corte. Tirei do caixa da firma e emprestei. No dia prometido, pagou direitinho. Ela trabalhava de balconista numa rede muito conhecida de farmácias. Como sinal de agradecimento, ou simplesmente para demonstrar amizade, em todas as compras que eu fazia na Minerva da Praça Tiradentes, onde ela dava expediente, concedia-me um desconto especial. Muito gentil da parte dela.
 
À razão de um filho por ano ou ano e meio, dois, no máximo, ao se mudarem do bairro já deviam somar quatorze ou quinze. Apenas mais um menino. O último, se não me engano.
 
Jamais soube para onde foram e nunca mais vi nenhum deles. Nem o pai, nem as meninas, nem os guris. Somente muitos anos mais tarde, num jantar de amigos, encontrei na mesma mesa um cidadão que eu achava que conhecia, mas não me lembrava de onde. Ele me reconheceu prontamente. Era meu xará e tinha sido namorado da Marina, uma das mais velhas. Contudo, não se casou com ela.
 
Morenas, chegastes sorrateiras!
Sem alarde, abalastes as estruturas
Destes pobres moços. Tão lindas, faceiras,
Nem compaixão tivestes das criaturas...

Foram meses, foram anos,
Foram tantos desenganos.
Paixões de doer na carne,
Sonhos desejando encarne.
 
Partistes de repente, sem dizer pra onde,
No gozo da vossa santa liberdade.
Fostes com o sol pondo-se no horizonte,
E nos fizestes detentos da saudade.


 
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N. do A. - Na ilustração, O Colorido de Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897-1976).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 05/12/2012
Reeditado em 05/05/2021
Código do texto: T4020777
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