Então, é 10 de dezembro.

Na minha ensolarada terra adotiva, a ilha de Santa Catarina, eu tomava a minha xícara do centenário Café Moka, trazido especialmente da minha terra natal, a minha São Paulo, para prolongar os sentimentos dos tempos, dos lugares, das pessoas que sempre compuseram a minha existência.

Eu cismava, debruçada na minha xícara de café. Distraída, de pensamentos descompassados e vãos.

Opa, peraí, hoje é aniversário da morte do Pinochet. Mas como esse salafrário foi aparecer na minha mente num dia de sol, na exuberante primavera catarinense, com bem-te-vis a dar vida e graça pelos jardins?

Eu não entendi muito bem, não. Foi tão de repente que ele apareceu!

Há exatos 6 anos você, Pinochet, descia aos infernos. Deixe-me chamá-lo de Pipi, fica mais charmoso! Ou mesmo chamá-lo de Augustinho. Quem sabe não é charme: é uma forma de tentar te humanizar – coisa impossível e impensável. Como poderia eu, na minha insignificância social, tentar humanizar um ditador, o mais sórdido da história do Chile? Eu sei muito bem que você fez parceria com tantos outros algozes latinos, mas você fez questão de levar a taça!

O mesmo Chile poético de um Pablo Neruda, que, para lê-lo, o nosso Vinícius de Moraes apagava o sol. Mas, de repente, depois que você, qual alma penada apareceu nos meus pensamentos, comecei a me lembrar do choro convulsivo de uma ex- aluna, no pré-vestibular em São Paulo, foragida de você. Ela me contou que o seu irmão, com apenas 17 anos – só 17 anos, Pipi - fora perseguido numa feira livre. Preso pelos teus comparsas, fora assassinado e entregue para a família faltando partes do corpo. Já pensou, Pipi, uma mãe abrir o caixão e perceber o seu filho, jovem criatura, com uma história a construir – sem as orelhas? Outra garota, mocinha bonita, saiu da minha sala de aula aos prantos no dia em que eu trabalhava as ditaduras na América Latina. Eu não sabia mesmo que a sua família também havia vindo corrida para Florianópolis e que o avô também havia falecido no trágico episódio do Estádio Nacional. Conheço um senhor, que depois de toda a tragédia pelo qual passou, não tem um braço.

Valeu a pena, Pipi? Estou te tratando como um apelido apropriado a uma pessoa imbecilizada, por motivos óbvios. E citando pouquíssimos casos – apenas três. É só prá te refrescar a memória.

Espero ardentemente, oh Pipi, que, onde você estiver , aprenda algumas coisas fundamentais. Por exemplo: existe uma palavra interessante chamada respeito. É ! Respeito aos que pensam e agem diferentemente do oficial, querem outras propostas políticas, outros direcionamentos, menos obediência, menos passividade, mais espaço para o social, menos miséria, mais comida na mesa... enfim.

Outra palavra que seria bom que você conhecesse: direito.

Tem outras muitas palavras prá você conhecer: compaixão, cidadania, solidariedade, compreensão, ética, moral.

Mas eu vou parar. Deve ser muita coisa junta prá teu ínfimo poder de entendimento.

Onde estiver, aprenda, Pipi. Mesmo no calorzinho do inferno onde você se encontra, deve dar para aprender alguma coisa.

Existe vida, Pipi, longe do seu chicote medieval.

Vida que merece oxigênio, o canto dos pássaros, a beleza de um olhar puro, o direito de apreciar o aroma da existência sem culpa mas apenas pelo prazer da partilha. Existe alegria, a doce alegria de uma mãe ao ver o seu filho ter opinião própria e conseguir fazer a sua estrada... mas com as duas orelhas nos devidos lugares. Alegria de familiares unidos assistindo a uma partida de futebol no Estádio Nacional com motivos de contentamento e lazer e jamais estar ali na fase mais desesperadora da sua história.

Cá prá nós, o que você ganhou, Pipi? Conta, vá.

Acho que sei o que você NÃO ganhou: amor verdadeiro, um abraço quente e apertado, um olhar brilhante e verdadeiro de alguém que ama. Não ganhou verdade, não entendeu que o mundo é maior que as suas manias, o seu veneno, o fel que circula em suas malditas veias . Não aprendeu nada da vida, Pipi, nem um simples significado da palavra empatia.

Eu gostaria de te comprar um dicionário, Pipi. Prá que você lesse, decorasse os verbetes mais importantes. Tentasse colocar em prática, mesmo que a duras penas, o que realmente vale nessa vida.

Fica aí, Pipi. Fica quietinho na sua solidão escura, ouvindo os gritos loucos do cárcere, tudo escondido na sua mente, em algum lugar, que não te deixa dormir nenhum segundo.

Fica aí que o mundo, sem você, ficou muito melhor.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 10/12/2012
Reeditado em 10/12/2012
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